«Já leu este? Uma beleza! Há livros vaidosos e coquetes, orgulhosos da sua encadernação e da sua lombada. Há livros que se deixam apreciar assim, ao toque, livros que não precisam de ser lidos para serem amados. Livros que merecem o melhor lugar na estante, espaço para se espreguiçarem ao sol ou para verem as estrelas cruzar o céu. Há livros que são obras de arte, objectos de culto, pela forma com que os poetas ali colam a alma ao papel. Livros que parecem telas e seduzem pela beleza. Lá dentro guardam segredos. Segredos de alquimista…» (in Marquesa de Alorna)
Talvez este excerto resuma bem o que sinto, porque fala do amor. Amor é dar sem pedir de volta, é querer sem saber porquê, é um «contentamento descontente» é ser grande e infinito e ter asas para voar em céus improváveis.
E há lá historia de amor comparável à história do meu amor pelos livros?? Porque cresci no seio deles, porque sempre fui ensinada a respeitá-los, porque encontro em cada um aquela fusão de sentidos que me ocupa o lado esquerdo do peito. Foi com os livros que aprendi a rir e a chorar, e com eles desenhei matizes de azul no meu coração e desatei nós e compliquei a vida e fui tudo e fui nada, mas o que importa é que fui. E tornei-me mulher entre livros aprumados de lombadas perfeitas e livros de páginas soltas e outros tão soltos que nem páginas tinham. E havia aquele cheiro que distingo entre milhares de outros e aquela alegria descontrolada ao folheá-los e aquelas letras miudinhas a tentarem ser gente a perseguirem-me pelo quarto, na janela que dá para o mar, no tempo sem tempo e no tempo em mim.
E havia ainda o jardim.
Sonhar é ter um ideal tão alto que não se consegue atingir nem sequer quando temos umas escadas encostadas ao tronco da nossa árvore. E foi isso que fiz. Subi à minha arvore primeiro a medo, depois mais confiante e à medida que a fui subindo, vi que a escada não acabava mais. Quantos lugares escondidos, quantos degraus invisíveis teria ainda de subir? E lá fui embalada nesse vagar que torna os dias infinitos de claridade, e quanto mais subia mais entendia de que matéria é feito o amor, pois havia momentos em que podiam até apagar as ruas dos mapas, as flores dos jardins, fazer transbordar os rios, desfazer o céu na poeira das estrelas que eu não daria por nada. As palavras escorriam como lágrimas e enchiam-me folhas e folhas como aquelas folhas das árvores que fizeram inventar uma sinfonia de verde e que partem e regressam dando lugar ao que os homens chamam «tempo». E as escadas, essas, continuavam a subir e eu com elas já só com o medo singular de nunca mais poder parar.
– És tu a escritora? – perguntava-me o rapazinhoO rapazinho abanou a cabeça. Não percebes mesmo nada, pois não? És escritora porque vês escadas encostadas a árvores e mais ninguém as vê e mesmo sem escadas consegues ir subindo .
– Não – disse eu – Só escrevi um livro. Isso não basta para se ser escritora.
– Mas só os escritores conseguem subir aquela árvore, acolá!
– Ora isso é porque há ali um escada.
– Escada? – perguntou-me, admirado – não a vejo
– Vês sim, olha ali !
E foi ai que desatei a escrever, e nunca mais parei, mas na verdade sabia que a escada continuava a ter degraus como o abecedário tinha letras para que eu fizesse com elas o que bem entendesse. E só algumas raras letras dariam livros bonitos, como aqueles que a memória me trazia, encadernados e orgulhosos, na estante do meu pai.
Um dia vou ser escritora.
Suspirei, com a certeza irremediável que o caminho estava apenas no início. Não conseguia chegar ao topo da árvore, aquele lugar exacto por cima da copa, da cidade e da floresta onde, dizima os poetas, se via o céu. Ia, vou apenas no primeiro degrau e já os sinto cada vez mais altos, angulosos, intransponíveis.
Pode parecer estranho, mas só então percebi o que era o amor.
Maria João Lopo de Carvalho
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