Tendo lido estas obras uma a seguir à outra fez-me sentido falar delas em conjunto.
"Pão Seco" foi uma descoberta intensa, dolorosa e de um realismo brutal. Foi realmente uma leitura muito forte quer pela escrita dura e muito crua como pela história contada. Sabem quando a realidade ultrapassa em muito a ficção? Quando, depois de teres lido muitos livros, estás perante um que sai fora de tudo o que leste até aí?
Estes volumes constituem uma autobiografia (existindo um outro, "Rostos", que ainda não li) e neste primeiro é-nos narrada a infância e juventude do autor, marcada por um ódio intenso na sua relação com o pai que era uma pessoa de uma agressividade extrema. Miséria, fome, violência, drogas, prostituição, criminalidade pelas ruas de Tânger e Tetuão (Marrocos).
Com um estilo seco, que saltita de quando em vez entre acontecimentos mas que não é difícil de seguir, esta obra marcou-me profundamente como leitora. Não existe inocência nesta infância e sim uma forte resistência que o fazem um sobrevivente. Mas não se enganem, Muhammad Chukri resvala na marginalidade como seria de esperar.
"O meu irmão chora, contorce-se com dores, chora por pão. É mais novo que eu.. Choro com ele. Vejo-o (o pai) a acercar-se dele. O monstro acerca-se dele.A demência nos olhos. As mãos, quais tentáculos dum polvo. Ninguém o consegue deter. Sonho que peço ajuda. Monstro! Demente!Alguém o detenha! Num ataque de fúria, o maldito torce-lhe o pescoço. O meu irmão contorce-se. O sangue jorra-lhe da boca. Fujo para fora de casa enquanto o meu pai cala a minha mãe ao murro e ao pontapé."
"(...) - O pai vai-me matar como matou o mano.
- Não tenhas medo. Vem comigo (a mãe). Ele não te vai matar. Anda. E cala-te, para os vizinhos não nos ouvirem.
O meu pai lava-se em lágrimas e cheira rapé. Impressionante: primeiro mata o meu irmão e depois chora."
No final desta obra fica a esperança que a escrita e a leitura, que Chukri quer desesperadamente aprender, o salvem da vida que tinha até então. Foi isso que me fez de imediato pegar o livro seguinte, "Tempo de Erros", que fui buscar à biblioteca.
Este segundo volume é menos chocante, a aprendizagem traz-lhe um sentido de análise sobre o mundo que se reflecte nas suas palavras, embora os problemas com a bebida o levem a situações desesperadas. O álcool está presente na sua vida de uma forma avassaladora mesmo depois de ter conseguido alguma instrução e de ser um devorador de livros.
São duas obras de uma intensidade imensa, É impossível o leitor ficar indiferente. Li que o terceiro volume desta trilogia, "Rostos", se afasta um pouco do carácter autobiográfico apresentando-se já como escritor, e fazendo referencia a várias pessoas que terão marcado a sua vida, sendo a narrativa mais fragmentada. Creio ainda não estar traduzido para português.
Terminado em 28 de Outubro de 2025 e 6 de Novembro de 2026, respectivamente
Estrelas: 5*
Sinopse "Pão Seco"
Quando a fome grassa no Rife, uma família parte para Tânger em busca de uma vida melhor.
Nas noites passadas ao relento, nos becos da cidade, o pequeno Muhammad, orgulhoso e insolente, descobre a injustiça e a compaixão, a tirania da autoridade, a loucura labiríntica da miséria, o consolo das drogas, do sexo e do álcool.
E é na prisão que um companheiro lhe desvenda as maravilhas da leitura, mudando para sempre a sua vida.
Estreia do autor em Portugal, em tradução directa do árabe, Pão Seco foi publicado originalmente em 1973, na tradução inglesa de Paul Bowles (For Bread Alone), quando os editores de língua árabe não estavam ainda preparados para o caos narrativo, a linguagem crua e a indisciplina gramatical que desafiavam a tradição e o «bom gosto».
«Verdadeiro documento do desespero humano» (Tennessee Williams), obra de culto proibida até recentemente nos países árabes por tocar em tabus da sociedade magrebina.
Este avassalador romance autobiográfico consagrou o autor e continua a iluminar o caminho de várias gerações de renegados marroquinos.
Sinopse "Tempo de Erros"
Em Tempo de Erros (1992), Muhammad Chukri prossegue o duro relato autobiográfico iniciado em Pão Seco. Nesta história, assistimos aos anos de aprendizagem do autor, à sua crescente obsessão pela leitura e ao advento de um escritor. Entre a família em Tânger e a escola em Laraxe, preenchem os seus dias uma galeria de almas perdidas, amigos e amantes como a marca da loucura e, diz-nos, «bárbaros com quem vivi de noite em estreitas ruelas e tabernas duvidosas». Num país onde «os inteligentes enlouqueceram e deliram pelas ruas, e os que merecem ficar aqui emigraram», Chukri revisita a doença, a idade adulta e as amizades com os marginais estrangeiros atraídos por Tânger, reiterando a impossibilidade de aniquilar os desejos que o movem.
Cris

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