Li com gosto este livro, muito embora, no início, tivesse tido alguma dificuldade em
compreender a linguagem utilizada nalgumas partes. Não a achei difícil de apreender e até acho que tem uma musicalidade sui generis, quase poética, mas foi isso que aconteceu. Depois de entranhada, fluiu bem.
A história prende-se com as memórias que possuímos na infância e que muitas vezes se desvanecem no tempo ficando uma sensação que pode não corresponder verdadeiramente ao acontecido. Mas, lá está, o sentimento de que algo aconteceu continua lá, que pode ser uma sensação de perda, de abuso, de falta de amor, etc.
O protagonista, e também narrador, relata-nos a sua infância. O seu nome só é desvendado muitas páginas à frente. Logo de início, um acidente grave onde perdem a vida os seus avós faz despoletar toda uma memória de traumas de infância.
Passado e presente são intercalados sem que o leitor perca o fio à meada. O narrador, adulto, revisita o seu tempo de menino de 10 anos. O medo por se sentir diferente e que lhe tolhe os movimentos, o bullying a que é sujeito, os nomes atirados com raiva, as agressões cheias de ódio e que passam despercebidas e que esconde desesperadamente. As visitas a casa dos avós e o tio que se insinua sexualmente sem que ninguém se aperceba.
E sempre as memórias que não são exactas e que deixam dúvida.
Como é que uma criança lida com os diferentes tipos de abusos a que é sujeita? Onde leva o medo se não tiver escape? A somatização dos traumas é, muitas vezes uma dura realidade. Os comportamentos obsessivo/compulsivos a saída encontrada pela criança.
"Se, durante um almoço, eu não abanasse a perna direita um dado número de vezes, isso significaria que o rapaz mais velho que me pisou a cabeça estaria à minha espera quando regressasse à escola. (...) Se abanasse as duas pernas em simultâneo entre cada fala do apresentador das notícias, na televisão, então ter-me-iam esquecido das lengalengas com que também rimavam o meu nome em palavrões. Durante semanas fui adicionando pequenos gestos aos meus rituais. (...) Todos estes eram rituais viciados mas que passavam despercebidos, Conforme os dias avançavam o preciosismo da alucinação ganhava mais detalhe." pág 86/87
"Os meus rituais passaram a ser não só de súplica, como também de graças." pág 95
"Passaram-se anos, mas continuo a detalhar as noites de pavor, insinuando-me nas ausências com que esta cidade me recebe. (...) Não somente os aldeões, os pioneiros, mas também as crianças que me atulharam os dias de pavor, não imagino que tenham crescido (...) Talvez me procure também o meu tio, o que terá feito de mim para que, quando acordei, naquela noite, me parecesse tão saciado. Onde me esqueci de vigiar as horas? A sua impunidade pesa-me aos ombros." pág 213
Um livro duro, uma história sobre coragem também. E o poder do amor que um animal te dedica.
Terminado em 6 de Novembro de 2025
Estrelas: 5*
Sinopse
O elevador caiu. Os corpos ainda não arrefeceram, mas
a família desfaz-se. O luto não é só perda - é também libertação, é
fuga, é abandono. E, para uma criança, pode ser o fim decisivo da
inocência.
Quinze anos depois, é nos fragmentos difusos de uma infância marcada pelo medo que o narrador, agora adulto, tenta dar forma ao seu trauma e compreender quem se tornou.
Nesta dolorosa narração, há lapsos, imagens que se repetem, detalhes que só mais tarde ganham significado.
Nenhuma pedra fica por virar: o abuso, tão difícil de nomear; a violência, por vezes física, quase sempre emocional; e o abandono, sempre o maldito abandono, vindo de quem nunca deveria ter ousado pensar em partir.
«Olho essa violência de frente, defino-a em rigor, nomeio-a, dou-lhe a minha voz para que ninguém faça dela a sua fala. Feito em pedaços de pedra, é a mim que a minha dor pertence.»
Uma nova voz na literatura portuguesa - urgente, inconfundível. Álvaro Curia está de regresso com um romance em que a escrita é ferida, denúncia e salvação.
Cris

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