Em boa hora, decidi, no início deste ano, ir buscar à estante livros que preguiçosamente vão sendo esquecidos e passados à frente pelas novidades. Este foi um livro que me foi oferecido em 1988 e que só agora li. É um livrinho que se lê depressa e que tem a vantagem de ser precedido de um excelente prefácio de uma edição revista pelo autor, escrito em 1961, que nos ajuda a compreender ainda melhor esta novela de Fernando Namora, a segunda obra da sua autoria. Jovem médico, desterrado numa aldeia, “Havia em frente do meu consultório um pequeno adro e nele um casebre meio derruído, sem dono, ou assim poderia imaginá-lo, pois quem o habitava era gente erradia que vinha e partia sem se saber quando…. A malta”. Como ele explica, no seu prefácio, “O livro já existia dentro de mim, naquele gosto intenso de um fruto saboreado antes de o colhermos da árvore, de tanto lhe anteciparmos o paladar, quando, certa tarde (conheceis as sestas imóveis da aldeia, a modorra que, ou nos sepulta, ou nos obriga a fendê-la com um berro de socorro?), a aventura começou: oito dias de trabalho febril, o único livro de ficção que, até hoje, escrevi de rajada. E, todavia, é de todos eles o mais tranquilo.”
Esta novela é constituída por seis capítulos que contam histórias de pessoas que passam por aquela “espécie de saguão” abandonado, onde pernoitam malteses, vagabundos, ciganos. Os de “lá de fora” olhavam-nos com desprezo, “uns leprosos”, “abriam fossos de ódio e de repulsa”, mas afinal quem eram afinal esses “estranhos”? Abílio que um dia partira a correr mundo para fugir à fome e que agora regressava cheio de saudades da sua vila? Um grupo de ratinhos a caminho da ceifa e que repartem a comida que levam para o caminho? A cigana em trabalho de parto? O Ricocas saído da choça para onde a justiça dos ricos o atirou por ter batido num polícia? O Troupas a quem o fogo tudo roubou. O Manel sem raízes e que quer seguir com os ratinhos, como se fossem a família que perdeu? A Carminda que só queria ter o filho em terra firme, longe do areal onde o marido montara o negócio? Ou Graça, a rapariga da mala, diferente de todos eles mas que fugia duma experiência de sedução, ciúme e violência? “Todos ali eram uns desgraçados! A desgraça os solidarizava, naquele calor instintivo e fraterno, como reses de um rebanho acossado pelos lobos. A desgraça os solidarizava, tal como eram, sem fingimentos.” Sentados à volta do lume, partilhando o pouco que tinham, naquela casa havia “uma solidariedade que os confundia e identificava.” Troupas, que ficou sem nada, emociona-se com o nascimento da criança e diz: “Hoje, estou contente com o mundo e não tenho nada na cabeça que seja das coisas feias que eu vivi. Nasceu uma criança e eu posso morrer: ela virá fazer a viagem por mim.”
O narrador, o escritor, o médico desenraizado está no meio daquela gente da casa da malta. É um deles. Solidariza-se com esse povo. Identifica-se com aquele “calor humano”. No prefácio desta edição revista pelo autor, Fernando Namora diz que abomina rótulos e clubismos, mas alude ao neo-realismo com que se identifica, não como moda, nem se submetendo a fórmulas ou cenários específicos. “A minha presença no neo-realismo não é a de quem adere, de quem se arregimentou”. A sua independência não quer dizer individualismo, nem solidão. “Os meus livros representam quase um itinerário de geografia humana, por mim percorrido; as andanças do homem explicam a do escritor.”
O que mais poderei dizer sobre este livro de Fernando Namora para além de o aconselhar? Ao livro e ao prefácio, uma interessante reflexão sobre a vida literária e sobre a profunda ligação da experiência literária com a sua experiência humana. É sempre bom conhecer ou voltar a ler os nossos escritores contemporâneos.
19 de Julho de 2021
Almerinda Bento
Parece-me uma excelente sugestão de leitura. Obrigada.
ResponderEliminar