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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Convidada Escolhe: "O Estrangeiro"

O Estrangeiro”, Albert Camus, 1942

Começa-se a ler “O Estrangeiro”, para mim uma releitura, e há uma estranheza, enquanto leitora, que se vai adensando, longe de se vislumbrar o desfecho final. Há um mal-estar nas atitudes e reacções de Meursault, o herói deste romance de Camus, de tal modo que frequentemente me senti como se estivesse a ler Kafka, pelo absurdo, pelo inesperado, pelo imprevisto. Na longa introdução ao livro feita por Jean-Paul Sartre, este chama a Meursault um “herói ambíguo”. Meursault passa pelas coisas indiferente, parece que não tem opinião ou, pelo menos, não a expressa e o patrão acha que ele é um homem sem ambição, pelo menos para o negócio!

Estrangeiro o herói; estrangeiro o leitor. Com uma escrita muito visual, diria mesmo cinematográfica, com frases muito curtas e sincopadas, sem floreados, Camus leva-nos a acompanhar o dia-a-dia de Meursault. Toda a semana, desde que se levanta, vai para o trabalho, almoça no Celeste, regressa ao trabalho, sai do trabalho e volta a casa. Os fins de semana que poderão ser uma ida à praia ou um dia inteiro em casa sem fazer nada. Os barulhos no prédio com os vizinhos. Maria, a namorada, é talvez a pessoa mais “normal”, aquela que tem as reacções mais previsíveis do ponto de vista social.

Mas essa rotina só a conhecemos depois, porque o romance começa com a notícia da morte da mãe de Meursault, a viver há três anos num asilo. O enterro da mãe é um momento de quebra da rotina, como será o assassinato involuntário de um árabe, num domingo de praia e de convívio com amigos.

A segunda parte do romance tem a ver com Meursault na cadeia e com todo o processo de preparação do julgamento. Ele não tem medo do que possa ser a sentença. Ele não se sente réu, antes posiciona-se de fora, como espectador do seu próprio julgamento. Ele não se sente como criminoso, sente aborrecimento e não arrependimento. Ele sente-se intruso na sala da audiência, tanto mais que as suas respostas são “inconvenientes”. Ele não se acha culpado, mas tem a sensação de que todos os que estavam no dia do julgamento o detestavam. Ele não percebe o que se está a passar, porque o processo centra-se não no assassinato, mas na sua vida a partir do dia do enterro da mãe. É notória a ironia relativamente à Justiça e à Igreja. Ele não encaixa nem no esquema da investigação enviesada montada pela justiça para o condenar, nem nas tentativas do juiz e do capelão para o converterem.

É sempre bom voltar aos “clássicos”, redescobri-los. Foi o que fiz. Reler um livro, lido há muitos anos, descobrir por que me marcou na altura em que o li.

Termino transcrevendo breves frases da introdução de Jean-Paul Sartre “Explication de L’Étranger” da edição da Unibolso:

Mal saíra dos prelos, O Estrangeiro de Camus obteve a maior aceitação. Toda a gente dizia que «era o melhor livro desde o armistício». No meio da produção literária desse tempo, este romance era, ele próprio, um estrangeiro.”

E nós próprios que, abrindo o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, procuraríamos em vão julgá-lo segundo as nossas normas habituais: ele é um estrangeiro também para nós.”

O encontro do leitor com o absurdo.”

Mouriscas, 11 de Agosto de 2020

Almerinda Bento


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