Um dia percebi que poderia aprender a ler os igarapés - esses cursos de água da Amazónia- voar pelas
copas dos ipês amarelos da selva, descodificar o fogo das lareiras, ouvir o palpitar da terra, decifrar ventos, cultivar a serendipidade e aprender com as itinerâncias num autocarro.
Um dia dei conta de que havia mundos mágicos, paralelos, se nos deixássemos levar pelas vielas das palavras, uma vez que a forma como falamos está relacionada com a forma como pensamos. E se nos nutrirmos de ideias pelas histórias, havemos de armazenar pensamentos para mais tarde partilhar. As histórias aproximam-nos de nós e dos outros. Desfazem muros. São partilha. Fazem parte da nossa anatomia para a sobrevivência.
A minha avó Alzira só tinha a quarta classe e inventava fábulas para eu e o meu irmão adormecermos. Para mim, foi a mais douta das mulheres que me ensinou, primeiro, a querer caçar histórias e como eles podem ser uma forma de amor. E, nas estantes dos meus pais, nunca faltaram mundos diversificados e mágicos prontos para que o mergulho fosse necessário. Aqueles volumes eram livros de areia. Ou seja, uma vez lá dentro, tornavamo-nos grãos de uma ampulheta que nos faziam submergir, navegando e explorando, quase como se fôssemos ao centro da terra.
Talvez por isso, e muito por causa disso, caminho pelas estradas das margens para olhar os detalhes: a forma como as borboletas falam, a dança bruxuleante das folhas que levitam no ar, a forma como as raízes se espreguiçam à procura da humidade no solo, a maneira como o mar beija a areia, numa paixão renovada.
Tenho aprendido, ainda, que as tempestades são bálsamos de mudança. E as viagens são sempre tempestades. Epopeias ao mundo dos outros. Itinerâncias aos nossos quotidianos. Jornadas empáticas pela costura das culturas. São a melhor forma para ararmos o terreno interior, fazendo nascer novas linguagens em nós e habilidades para decifrar o mundo. Talvez por isso – e muito devido a isso – desde cedo escrevinhei a lápis de cor nos livros dos meus pais, sem saber o que lá estava escrito. Há clássicos da literatura riscados pela criança que fui, naquele ali e agora. A criança com quem falo ainda. Afinal, a essência de nós permanece, transforma-se na mulher que sou, sem deixar de me vigiar para a espontaneidade da vida.
Talvez por isso – e muito devido a isso – fui escrevinhando o que sentia em vários cadernos, ao longo da vida. Primeiro através da poesia, depois com a prosa lírica. Mais tarde escrevendo com a luz: a fotografia; caminhando, nómada, até ao cinema. No fundo, são coordenadas para trazer das profundezas do mar, do íntimo da nossa essência, a fronteira invisível daquilo que fica por dizer quando tentamos traduzir o que pensamos e sentimos em palavras. Há sempre um território insondável onde as palavras parecem não ser suficientes para tornar verbal a linguagem das emoções.
Talvez por isso – e muito devido a isso – a criação que cruza todas estas linguagens, possa ser uma forma de nos aproximar. E se - confidencio - a minha primeira palavra ao mundo foi “Olá”, creio, que quem começa assim, já nasce com a missão de criar pontes. Talvez por isso – e muito devido a isso – escreva, para aproximar mundos e traduzir a forma como nos costuramos para ficar mais perto.
Vanessa Ribeiro Rodrigues
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