“A vida tem dentes e morde. É carnívora.
A vida é uma dentada.” (p. 79)
Depois da experiência de dois livros infantis, “A Cantora Deitada” (2015) e “A Grande Viagem do Pequeno Mi” (2016), Sandro William Junqueira (n. 1974) regressa à edição de um romance, “Quando as Girafas baixam o Pescoço”, publicado recentemente.
O novo romance vem consolidar o trabalho do autor como um dos nomes a reter no contexto da actual literatura portuguesa. A escrita apresenta-se mais polida, depurada e reflexiva quando comparada com os romances anteriores. O autor concentra a sua atenção e energia naquilo que é essencial. Tudo o que é acessório, adiposo, ficou de fora. Restaram os ossos. É neles que o leitor vai degustar o tutano, a matéria-prima, aquilo que verdadeiramente importa.
O universo que o autor desta vez nos apresenta distancia-se da realidade distópica ou dos totalitarismos apresentados em “O Caderno do Algoz” (2009), “Um Piano para Cavalos Altos” (2012) e “No Céu não há Limões” (2014), centrando-se, agora, numa realidade concreta, um prédio numa dada rua que, sem a indicação de um local específico, porque isso não é importante, poderia ser o nosso prédio, a nossa rua.
A mudança de um macrocosmos para um microcosmos, onde decorre a narrativa, torna este livro mais próximo da realidade do leitor, na medida em que as questões abordadas são, também em si mesmas, situações reais do quotidiano das pessoas, da sociedade em geral.
Personagens como a Mulher Gorda, a Rapariga Magra, o Adolescente Musculado, o Velho, o Homem Exemplarmente Vestido, a Mulher Móvel, a Mulher Imóvel, o Homem Desempregado, entre outros, vão surgir ao longo da obra que se desenrola sob a forma de capítulos breves, quase como se tratassem de contos que se vão articulando entre si. Caberá ao leitor criar a imagem, a descrição física dos personagens porque tudo isso na obra é acessório. A narrativa centra a sua força nos problemas de cada morador do prédio que, no fundo, se assemelham aos nossos problemas também, daí a aproximação à realidade social através de temas como os do desemprego, distúrbios alimentares como a anorexia, a imigração, a velhice, psicoses e depressões, entre outros.
A importância do corpo continua a ser um dos pontos-chave neste novo romance de Sandro William Junqueira. O corpo é apresentado como motor de prazer ou de dor, ou até mesmo em situação de mobilidade condicionada. O corpo também é apresentado na sua íntima relação com a parte emocional e psicológica, abrindo aqui uma brecha para as doenças do foro psiquiátrico que se desenvolvem ou que são potenciadas no decurso de situações concretas como o desemprego, a ansiedade, as expectativas goradas, a infelicidade generalizada que, em situações-limite, poderão conduzir ao suicídio. "Muitas vezes queremos agarrar a vida com a nossa própria mão. Mas a vida é um balão que encontra sempre uma maneira de se ver livre dos dedos." (p. 24)
É na forma como cada personagem sobrevive à realidade que, não raras vezes, somos confrontados com a escrita afiada do autor que apresenta as ideias de uma forma tão depurada, através de frases também breves. Palavras soltas com ponto final são várias vezes o suficiente para esmagar o leitor à crueldade da realidade que se apresenta tantas vezes dura, difícil.
“Quando as Girafas baixam o Pescoço” é um romance que volta a marcar o leitor, em todos os sentidos. Este novo livro remete-nos para a grandeza apresentada em “Um Piano para Cavalos Altos” e consolidada em “No Céu não há Limões”, contudo, é, talvez, a sua dimensão mais realista que torna este livro tão especial e tão próximo da vida das pessoas, das suas vicissitudes, dos seus dilemas, das suas angústias.
Trabalhar uma escrita quase em tom minimalista é quase como que utilizar uma faca bem afiada para que elimine toda e qualquer gordura linguística e até gramatical. Está tudo no devido lugar. Qualquer palavra a mais, será um excesso, um abuso até.
Este registo linguístico que carece de adjectivos para além dos nomes dos personagens é de tal modo trabalhado e reflexivo que, neste novo romance, adquire mais um atributo face aos romances anteriores, que é o recurso aos aforismos ou máximas que surgem ao longo da obra. “A memória é a âncora que nos prende ao Inferno.” (p. 73)
Um personagem que parece transversal nos vários romances do autor é o representante do elemento religioso, seja pela via de um sacerdote, um padre ou, neste romance, um profeta que era o visionário da rua. O profeta apregoa os últimos dias com a chegada inevitável do Armagedão. Este elemento constitui, em certa medida, a garantia de funcionamento de um macro ou microcosmos, muito para lá da questão religiosa em si mesma, e mais como uma tentativa de interpretação de sinais existentes na natureza que não estão acessíveis à maioria das pessoas (ou como reforço e consolidação de um dado regime político), havendo, pois, os escolhidos que promovem essa explicação da natureza e do mundo aos demais. “Porque quem não temer o Armagedão é cobarde. Porque quem não temer o exército de salmões e gafanhotos divinamente modificados é medricas. Porque quem não tiver medo de beber a peçonha e quem não gritar aaaiiiii é fraco. Porque todos, um dia, somos Golias e, no dia seguinte, ferida.
E quem escutou, salvou-se.
E quem não escutou, fodeu-se.
Disse.” (p. 152)
“Quando as Girafas baixam o Pescoço” constitui uma metáfora da vida tecida pelas linhas da ironia.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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