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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A Escolha do Jorge: “Pequenos Delírios Domésticos”


“Há sítios no mundo que não estão lá.” (p. 69)

Vencedora por duas vezes com o Prémio APE de Novela e Romance, com as suas duas primeiras obras “Que Importa a Fúria do Mar” (2013) e “Não se pode morar nos olhos de um gato” (2016), Ana Margarida de Carvalho presenteia os seus leitores com o seu primeiro livro de contos, publicado recentemente. “Pequenos Delírios Domésticos”, título emprestado a partir de uma letra de Sérgio Godinho, a autora volta novamente a dar cartas no domínio das letras. Se os romances anteriores, pejados de grande fôlego, e revelando, aos poucos, uma escritora que se afirma no contexto da literatura portuguesa contemporânea, esta nova obra, apresenta uma escritora capaz de surpreender também no campo da narrativa breve.
      Partindo de histórias que têm eco na actualidade, nacional e internacional, Ana Margarida de Carvalho introduz-nos Man-hu-el, o jihadista português, treinado na Síria, que regressa a Portugal para cometer um atentado; Saadi, um refugiado sírio, que se faz passar pelo irmão, falecido no decurso da fuga para a Europa; Raji que serve de mediador entre um judeu e um palestiniano, no que concerne ao direito de posse da terra na Cisjordânia. Ou ainda a temática dos refugiados em massa que olham para a Europa como um porto seguro e que são engolidos no mar, nos muitos naufrágios que têm lugar no Mar Mediterrâneo.

      Estes “Pequenos Delírios Domésticos” reflectem, em inúmeras situações, a escrita jornalística da autora. Um olhar atento, crítico, interrogativo também, mostra-nos a realidade, tantas vezes absurda, surreal, mas também caricata, sem perder, no entanto, a oportunidade de esquartejar com a navalhinha da crítica o mundo louco em que vivemos.
     Quem fica indiferente aos múltiplos vídeos nos noticiários sobre a imigração clandestina em massa com que a Europa se defronta nos últimos anos? Perante imagens que nos incomodam ainda que nos deixem, na maior parte dos casos, sem saber como agir, também não ficamos indiferentes a reflexões como “Somos um caixote de caroços, lançados fora, náufragos dos nossos próprios corpos. E o mar, mesmo que não fertilize, está com uma disposição caridosa de acolher.” (p. 43)
      Nos recentes anos da crise vivida sob a égide da troika, foram vários os jovens que, não tendo nada a perder, sem valores, sem estudos, sem referências e já com uma adolescência marcada por pequenos e grandes delitos, aderiram ao jihadismo. Treinados no Médio Oriente e com células espalhadas em toda a Europa, Portugal não escapou à regra, tendo sido até detectada uma dessas células nos arredores de Lisboa. O conto “A troca” refere-nos algo que segue em linha com essa tendência. “Man-hu-el era o único português da companhia. Gabavam-lhe a frieza com que assistia aos chicoteamentos, aos decepamentos e às execuções, a rapidez a manejar armas de alta precisão, a firmeza dos dedos no garrote, a fidelidade com que decorava passagens sagradas. Aprendia rapidamente. Por isso, foi o reconvertido seleccionado para uma missão suicida, considerada de médio impacto.” (p. 23)
      A par deste género de episódios, à autora não escapa uma oportunidade para fazer a crítica social sobre os bairros periféricos da capital e do contraste entre ricos e pobres e pobres que se querem fazer passar por gente bem, mais não seja à conta de uma renovação da casa com o selo do IKEA. A crítica é igualmente extensível à forma como actualmente se faz jornalismo, um jornalismo pobre, de entretenimento das massas e que em nada promove a reflexão dos telespectadores, no caso da televisão, especificamente. É esta a herança jornalística de Ana Margarida de Carvalho que é transposta nestes contos, de forma magistral, como num outro excerto de “A troca”: “Abriu um pouco mais os cortinados, extravagantemente estilizados, que a mãe, sabendo do seu inesperado regresso, correu a comprar no IKEA, nada mais dissonante que o design nórdico estampado às janelas de um prédio-gaiola, quase todas as vidraças enjauladas, como se cada vizinho temesse a avidez do próximo e resguardasse dos outros a pobreza de cada um, num desses bairros que costumam aparecer nos noticiários, enxameados de muito adjectivo, advérbio, pontos de exclamação, tiros e alaridos vários, para entretenimento do espectador, bancada de telejornal.” (pp. 19-20)
      Delírios, devaneios ou estados de alma, a par de situações caricatas que estão no limiar entre a realidade e a ficção, a racionalidade e o absurdo, tornam este livro um verdadeiro deleite para o leitor. Contos como “O nome que te deram antes de nasceres” é provavelmente o mais hilariante e que se relaciona com os mistérios de Fátima e com um dilema, pertinente por sinal, para os habitantes locais. “Como é que pago uma promessa a Fátima, vivendo em Fátima? (…) E a solução chegou-lhe, enfim, tão límpida como uma manhã de Maio, depois do trovejar nocturno. A questão era complicar. Fazer o percurso de rastos, sim, havia de cumpri-lo, mas debaixo do chão. Através de um túnel” (p. 128) E o cumprimento da promessa vai conduzir a um “milagre”, a um acontecimento inusitado, mas esse ficará para o leitor saborear oportunamente.
      Para finalizar e dando um pouco a ideia de eterno retorno, o leitor é esgamado com “Chão zero”, o conto de abertura, que está relacionado com os incêndios de Outubro que devastaram por completo a casa dos bisavós da escritora, numa aldeia do concelho de Santa Comba Dão. É impossível ficar indiferente a este conto, dos mais breves do livro, mas com tanto sentimento, tanta nobreza, tantas memórias. As imagens da tragédia que assolou o país durante meses a fio, num Verão que parecia interminável, Portugal e fogo andaram de mãos dadas e todo um país mergulhou num luto que ainda hoje é incompreensível dados os acontecimentos recentes.
      Se o tempo nos arrasta e estica nas suas rodas com os olhos postos no futuro e num destino que se vai cumprindo, há algo em nós que olha para trás, que procura raízes, uma ordem, uma identificação, pessoal e familiar, cultural também, um passado, tantas vezes ancestral que já não nos pertence, mas que herdámos algo e ao qual pertencemos. A dada altura na vida, perante acontecimentos funestos ou porque a vida assim se nos impõe, procuramos esse Sebald que há em nós. As memórias associadas a objectos, lugares, cheiros, transportam-nos para um universo que procuramos compreender e que tantas vezes nos foge. A vida segue o seu curso rumo ao futuro, mas o passado, com tempo, deixa as suas marcas até porque, inevitavelmente, o procuraremos.
      “A minha infância é um esgoto atravancado de detritos. A minha infância tem esse cheiro a fumo nos cabelos e cinzas debaixo das unhas. Um cansaço granítico, uma velhice súbita nos pés. Não sei se estou dentro ou fora, se saí de ti, se entrei em ti, desconheço-te tão bem quanto te conheço. Perco-me cá dentro, entre restos, sobras, remanescências vãs, numa casa sem bússola, mas se conseguisse subir ao sótão talvez avistasse de lá a serra e a neve no cume, e reconhecia-te outra vez. Como se mantém a vista se não existe janela para me debruçar… Como me agarro ao corrimão de uma escada que já não há… Como avanço pelo corredor de sustos e escuridão, se ele está a céu aberto e não tem princípio, só fim… Como caminho nesta inexistência de chão, feita de vidros, pedras trituradas e pregos – foi o que restou… Como se faz para soterrar algo que me inclui…” (p. 11)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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