Foi a primeira vez que li uma das obras de Patrick Modiano (n. 1945), Prémio Nobel de Literatura em 2014, e foi interessante que (re)descobri no final do ano passado o livro "Dora Bruder" da prestigiada colecção "Pequenos Prazeres" das Edições ASA, aquando da reorganização do escritório. Perdi a conta às vezes que numa ou outra livraria peguei na recente edição do livro publicado pela Porto Editora na sequência da atribuição do Prémio Nobel ao escritor. Pelas opiniões que fui recolhendo ao longo dos meses, constatei que o escritor não é propriamente consensual quanto à preferência dos leitores. Mesmo tratando-se de um livro pequeno, acabei por nunca o adquirir sem que me recordasse que já tinha uma das edições, a segunda por sinal, em meu poder. Durante as arrumações e seleção de livros, fiquei contente quando redescobri o livro estando anotado o ano de 2001 como ano da aquisição do mesmo..
Ontem decidi então pegar no livro e aventurar-me na escrita de Patrick Modiano tendo ficado bastante surpreendido com a forma como o escritor apresenta as ideias, assim como o que esteve na origem de "Dora Bruder".
Gosto particularmente daqueles livros que fazem a ponte entre a História e a Literatura, não se resumindo apenas à História meramente factual, nem ao romance pelo romance por muito que conte uma boa história. Gosto de romances que adquirem em certa medida as características dos ensaios na medida em que, neste caso em particular, a história da vida de Dora Bruder mistura-se e confunde-se com a História propriamente dita.
Livros como "Dora Bruder" fazem-me recordar os tempos dos estudos em História e, em particular, uma cadeira que muito apreciei sendo, pois, Teoria da História e do Conhecimento Histórico. É este questionar a História cujas dúvidas se mantêm que conduz ao estreito relacionamento entre os caminhos trilhados pela Humanidade e o saber histórico propriamente dito. É este contínuo questionar a vida para compreender a História e compreender de que forma os acontecimentos históricos determinam e/ou condicionam a ação do indivíduo particularmente na sua relação com o outro (família, sociedade) que gosto de ver reflectidos nos romances que mais aprecio, uma vez que nos ajudam igualmente a questionar, a refletir, sem que nos apresentem apenas uma história pela história em si mesma como a comida rápida pronta a comer.
Quando este questionar é transposto de modo contínuo em obras como "Dora Bruder", o autor consegue a proeza de apresentar um livro cuja fusão entre a História e a Literatura saia ainda mais enriquecida e, consequentemente, o leitor também.
Patrick Modiano parte de uma premissa simples apresentada na primeira página do livro, vejamos:
"Há oito anos, num velho jornal, o "Paris-Soir", datado de 31 de Dezembro de 1941, dei na página três com uma rubrica: «De ontem para hoje». Já quase no fim, li:
PARIS
Procura-se uma rapariga, Dora Bruder, 15 anos, 1m55, rosto oval, olhos cinzento-acastanhados, casaco desportivo cinzento, camisola em tom bordeaux, saia e chapéu azul-marinho, sapatos leves castanhos. Endereçar todas as indicações ao Sr. E à Srª Bruder, Alameda Ornano, nº 41, Paris" (p. 5)
Partindo deste pequeno anúncio, Patrick Modiano tenta desvendar o que aconteceu à adolescente Dora Bruder, onde vivia, quem eram os seus pais, onde estudava até descobrir as razões do seu desaparecimento.
A partir da premissa cima indicada, o autor compreende que perante uma nova descoberta, acaba por descobrir uma Paris que nalgumas situações já não existe como o caso de edifícios e ruas que já não existem, uns na sequência da 2ª Guerra Mundial, outros relacionados com a reconstrução e modernização da cidade desde a 2ª Guerra Mundial até aos nossos dias.
Este reavivar a memória histórica da cidade de Paris é outra das questões com grande enfoque em "Dora Bruder". Este escavar as entranhas de um passado que teima em se ocultar está presente em toda a obra sentindo o leitor a necessidade de trazer à luz o máximo de dados possível como forma de contributo para a construção da memória coletiva.
"Dora Bruder" reaviva a mancha negra do século XX através da força que o Nacional-Socialismo teve na Alemanha e na Áustria na década de 30 culminando com a eclosão da 2ª Guerra Mundial que vitimizou mais de seis milhões de judeus (holocausto).
Dora Bruder apesar de ter nascido em França e de ser detentora de cidadania francesa, o seu pai, Ernest Bruder, era judeu austríaco, de Viena, e a sua mãe, Cécile Burdej, também judia, era natural de Budapeste, na Hungria.
Partindo de dados biográficos concretos, o autor leva esta busca incessante até às últimas consequências, tal como se tratasse de uma obsessão transformada numa questão de dever moral na medida em que era imperativo manter viva a memória não só de Dora Bruder, mas de todos aqueles que foram vítimas do holocausto. Assim, trazendo à luz estas histórias de pessoas reais que se perderam no esquecimento levadas pelo rio do tempo constitui uma forma de manter a História viva.
Patrick Modiano procurou a rua onde vivia Dora Bruder, o colégio em que estudou, a prisão e internato por onde passou até ao derradeiro destino final que foi Auschwitz. Certidão de nascimento, registos de matrícula e de frequência no colégio, registos da Polícia do tempo da Ocupação Nazi, entre outro género de documentos, o autor tentou a todo o custo reconstruir os passos de Dora Bruder desde que desapareceu do colégio a 14 de dezembro de 1941 até ter sido internada antes da sua deportação para o campo de concentração.
A determinação do autor em reconstruir o quotidiano de Dora Bruder é notável na medida em que à beira do desespero de causa, eis que surgem novos dados, mas é precisamente nesses hiatos para os quais não há respostas que Patrick Modiano conclui que é na ausência de respostas que Dora Bruder está viva e livre de toda a perseguição e onde podia em certa medida ser feliz sem que os carrascos nazis a perseguissem.
Excertos:
"Em 1924, Ernest Bruder casa-se com uma rapariga de dezassete anos, Cécile Burdej, nascida a 17 de Abril de 1909 em Budapeste. Não sei onde se realizou o casamento e ignoro o nome dos padrinhos. Que acaso presidiu ao seu encontro? Cécile Burdej vinha de Budapeste e chegara a Paris um ano antes, com os pais, as quatro irmãs e o irmão. Uma família judia originária da Rússia, mas que se fixara sem dúvida em Budapeste no princípio do século.
Depois da primeira guerra, a vida era tão dura em Budapeste como em Viena, e foi preciso voltar a fugir para o Ocidente. Tinham ido dar a Paris, ao asilo israelita da Rua Lamarck. No mês da sua chegada à Rua Lamarck, três raparigas, com catorze, doze e dez anos de idade, haviam morrido de febre tifoide.
Será que na altura do casamento Cécile e Ernest Bruder já habitariam na Rua Liégeard, em Sevran? Ou viveriam num quarto de hotel em Paris? Nos anos que se seguiram ao casamento, e após o nascimento de Dora, moraram em quartos de hotel.
Deixaram poucas marcas atrás de si. Quase anónimas. Não se destacam de certas ruas de Paris, de certas paisagens de arrabalde onde descobri, por acaso, que haviam morado. O que se sabe deles resume-se amiúde a um simples endereço. E esta precisão topográfica contraste com o que ignoraremos da sua vida para todo o sempre – esse hiato, esse bloco de desconhecido e de silêncio." (pp. 22-23)
"E, no meio de todo este brilho e desta agitação, custa-me a acreditar que estou na mesma cidade em que se encontravam Dora Bruder e os pais, e também o meu pai quando tinha menos vinte anos que eu. Invade-me a sensação de ser o único a estabelecer a ligação entre a Paris daquele tempo e a de hoje, o único a recordar-me de todos estes pormenores. O laço adelgaça-se por momentos e parece em vias de romper-se; noutras noites, a cidade de ontem surge-me em reflexos furtivos por detrás da actual." (p. 42)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Sem comentários:
Enviar um comentário