Há muito que conhecia a mestria de Alice Brito no manejo da palavra, na forma de escolher as palavras certas para expor ideias ou exprimir opiniões, nunca neutras. Não havia, no entanto, lido ainda o seu primeiro livro "As Mulheres da Fonte Nova", aclamado de forma generalizada como uma entrada brilhante no romance, quando me foi oferecido este seu segundo romance.
O título escolhido para a obra, provocatório e a que é impossível ficar-se indiferente, faz jus ao livro à medida que se vai entrando na sua leitura. A história da Europa, do pensamento e das ideias políticas que percorrem o século XX e que vão até aos nossos dias, marcados pela arrogância do neoliberalismo são o pano de fundo deste romance. Há vários planos temporais onde desfilam diferentes personagens formando um painel de figuras que ajudam a contar a história de várias gerações de uma família. Esses planos entrelaçam-se desvendando até ao final um percurso de acontecimentos, de escolhas, de conflitos.
Setúbal, a cidade natal da autora, é o ponto de partida do romance, com o nascimento de Juan em 1921. Até chegarmos a Dulce, a professora de Educação Visual colocada em Setúbal, na altura da crise das dívidas soberanas em 2008, vamos descobrir os fios que ligam este avô anarquista à jovem professora com um talento para a pintura, traço persistente na família, desde a bisavó. Setúbal é ponto de partida e também de chegada, mas, entretanto, passamos pela Galiza, por Barcelona, por Tarragona, Lisboa, Porto, Paris e Beja. À medida que a história vai sendo contada, vamos entrando nos diferentes ambientes, desde uma Setúbal pobre, no início do século passado, onde as mulheres anseiam por ser modistas, ou costureiras ou regentes escolares em vez da dureza do trabalho nas fábricas do peixe e onde aparece a classe operária a reivindicar a jornada de oito horas de trabalho; até à Barcelona triunfante e ufana da sua modernidade patente em 1929 no ano da exposição internacional onde a novidade da luz eléctrica se vai impor; a crueza da guerra civil em Espanha e as referências às disputas entre os vários grupos que na Europa lutavam contra o ascenso do fascismo ; a cidade de Paris do pós-guerra fervilhando de nomes que marcaram a cultura e as artes do século passado como Piazzola, Portinari, Sartre ou Camus; os ambientes da clandestinidade em Portugal, em que o rigor da disciplina e do cumprimento das tarefas impedia qualquer laivo de emoção ou de sentimentalismo ou de direito à individualidade; ou o peso do conservadorismo e da ideologia salazarista que se alimentou por décadas do preconceito, do medo e das aparências.
A Setúbal e a sociedade portuguesa actual são-nos apresentadas através de Dulce e do grupo de amigos que fazem parte do seu quotidiano, em especial David, homem de esquerda, atento e interessado ao que se passa no mundo e na sociedade, cuja formação e intervenção cívica vai beber à luta pela democracia em Portugal. Muito frequentes as referências à comida e, sobretudo, à simplicidade e sabor da cozinha alentejana como espaço privilegiado de convívio e relacionamento entre Dulce e os amigos.
Desfilam neste romance vários tipos de personagens como as criadas, os bêbados, as modistas, os chulos, as prostitutas, os agressores, a PIDE, a GNR. A narradora que é muito presente ao longo do romance não dispensa fazer comentários, àpartes muito pessoais, toma partido, invectiva e pune os "maus" e não tem contemplações nem faz "rodriguinhos" com a linguagem, usando o vernáculo com tanto à vontade como a linguagem mais erudita ou coloquial.
Este é naturalmente um livro em que a investigação histórica está muito presente e é marcadamente político: o fascismo não é ignorado nem poupado, assim como os abusos e os crimes que se cometeram em nome de ideias que arvoravam a defesa do povo e da humanidade. A história está repleta de momentos de autodestruição, a grandes mudanças sociais que se seguem às "revoluções" para logo se regressar a uma "normalidade" com o regresso das mulheres ao lar, às comidas, aos cuidados e ao arranjo das coisas da casa. Aos avanços e às conquistas segue-se uma aparente acalmia das classes que momentaneamente perderam o pé, para logo que possível reganharem o terreno perdido. Se por um lado nos é apresentada uma perspectiva da evolução social, o livro termina num momento particularmente difícil e sem perspectivas, com a finança a decidir cegamente sobre as nossas vidas.
Para terminar, e em jeito de síntese, depois da leitura deste livro impõe-se "As Mulheres da Fonte Nova". Certamente não me arrependerei.
Almerinda Bento
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