"Mataram o Sidónio" de Francisco Moita Flores é, como diz no livro o próprio autor, uma ficção e cito:
«Porém, é uma ficção que se fundamenta num documento decisivo, uma fonte impressa em 1921 e que é, nem mais nem menos, a autópsia do Presidente da República Sidónio Pais. É uma separata dos Archivos do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, Série B, Vol. V, e intitula-se Exames Periciais no Cadáver do Presidente da República Dr. Sidónio Pais, no Vestuário e na Arma Agressora. É assinado por Asdrúbal d’Aguiar, um dos mais proeminentes médicos legistas portugueses dos inícios do século XX. O documento que inspira este livro é citado em dezenas de trabalhos científicos, no entanto, apenas mobilizado para o aparato erudito". "O intrigante relatório forense conduziu a outras pesquisas nos arquivos do Instituto de Medicina Legal e às diversas reconstituições feitas na época pelos jornais de Lisboa.»
É uma obra com uma narrativa bastante atraente que faculta ao leitor muitos conhecimentos sobre a época em que a mesma se situa. Ao mesmo tempo é uma história de amor, onde os momentos bem-dispostos, que são imperdíveis, não lhe faltam.
A ação passa-se em 1918, ano decisivo para as ciências forenses em Portugal. É o ano da criação dos institutos de medicina legal e da criação da Polícia de Investigação Criminal-suportada por laboratórios e produzindo prova com fundamentação científica. Sidónio Pais, a pedido de Azevedo Neves, diretor da então Morgue, assinara os respetivos decretos, decisões que iriam modificar radicalmente a relação da medicina legal com a polícia e com os tribunais.
Contudo, no final de 1918 a ciência forense está a dar os primeiros passos, sendo pouco aceite nos tribunais que aplicam a justiça, que é baseada em confissões arrancadas sob tortura dos presos.
É o ano da tragédia de La Lys e, também, do Armistício que conduziu ao fim da Primeira Guerra Mundial. É o ano da "espanhola" a pandemia gripal influenza pneumónica que surge, no Portugal republicano, fragilizado e faminto, que se transformou num verdadeiro desastre que terá morto mais de cem mil pessoas, durante quatro meses.
É em plena crise desta pandemia que assolava também Lisboa, que se deu o assassinato do Presidente Sidónio Pais, cujo consulado se iniciara em dezembro de 1917, com um golpe de militar e que terminava assim em tragédia. Este assassinato permanece um mistério. A polícia havia prendido um suspeito, e tornara-se uma verdade indesmentível e absoluta para a área política também, que Sidónio Pais fora assassinado por José Júlio da Costa, muito embora as suas confissões fossem muito contraditórias. Os jornais confirmavam esta versão. Mas havia outras verdades. Os resultados da autópsia solicitada pelo juiz de instrução que verificara muitas falhas no processo, foram de tal maneira surpreendentes que anulavam completamente a hipótese de ter sido o acusado, José Júlio da Costa, o autor do crime. Este morreria 30 anos depois sem nunca ter sido julgado, o que confirma a dúvida sobre a sua culpa. Moita Flores, utilizando as técnicas forenses em que se encontra sobremaneira à vontade, reconstrói o homicídio e elabora um interessantíssimo romance, pleno de teses, aproveitando para apresentar ao leitor as mais importantes personalidades da época ligadas à medicina como Asdrúbal de Aguiar, diretor interino do Instituto de Medicina Legal em substituição de Azevedo Neves, que se encontrava, na altura, a desempenhar funções governativas, em agradecimento a Sidónio Pais, Júlio de Matos, Miguel Bombarda, etc.. Dá, ainda, uma ideia de como era, à época, a justiça e a medicina legal em Portugal.
Gostei muito.
Maria Fernanda Pinto
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