Autobiografia, José Luís Peixoto, 2019
Na dedicatória
escrita no meu livro pelo autor, está resumida a essência deste
livro que acabei de ler: “Para a Almerinda, estas páginas, como um
espelho que reflete em muitas direções”. Só à medida que se vai
avançando na leitura se percebe o sentido da dedicatória, a capa –
um amontoado de papéis cortados e onde surgem separadas as letras
que constituem o título do romance: AUTOBIOGRAFIA e o próprio
título escolhido pelo autor.
Este é o quinto
livro que leio de José Luís Peixoto e talvez um dos mais elaborados
e que mais obriga à participação do leitor na compreensão do jogo
de espelhos que nos é proposto. E quando, aparentemente, num dos
últimos capítulos, o narrador – José – nos dá a chave do
enigma, logo a seguir nos interpela “… na literatura, tem de
se prestar muita atenção às aparências. Estava farto de juntar
palavras? Depois de centenas de páginas escritas, gastam-se os olhos
e a cabeça, perde-se algum sentido mas, em grande medida, escrever
romances é ser capaz de resistir a esse cansaço. As explicações
são uma saída fácil, uma desistência, não acha? A sério, não
acha?” , sem que nos deixe o sossego de respostas acabadas.
José e Saramago são e não são a mesma pessoa. É deste
desconforto, deste desencontro/encontro que vive este romance. As
notas que José escreve no seu caderno quando trabalha para escrever
a biografia de Saramago, acrescentam mais interrogações à questão
sobre o sujeito da “biografia ou, melhor, texto ficcional de cariz
biográfico”.
As epígrafes
transcritas de textos de José Saramago, desde a primeira que inicia
o livro e que vão aparecendo ao longo do romance, são chaves que,
ao serem revisitadas, nos ajudam nesta leitura complexa sobre as
identidades:
“Não me
escondo por trás do narrador” (p. 47); “Há que escolher.
Memórias ou romance? Confissão ou ficção?” (p. 69); “Damos
voltas e voltas, mas, na realidade, só há duas coisas: ou você
escolhe a vida, ou se afasta dela.” (p. 73); “A vida, que
parece uma linha reta, não o é” (p.101); “O leitor lê o
romance para chegar ao romancista” (p. 116); “O leitor
deve ter um papel que vai mais além de interpretar o sentido das
palavras.” (p.120). “A literatura é o resultado de um
diálogo de alguém consigo mesmo.” (p.284)
Ou quando o romance
se vai aproximando do fim e José e Saramago dialogam:
“De novo as
explicações? Não vale a pena seguirmos esse fio. Mas sempre soube
que somos a mesma pessoa? Fiquei com essa desconfiança desde o
título, Autobiografia é um espelho, como nós somos um espelho.
Somos?
Sim, somos. No
entanto, não confie demasiado nos espelhos, os espelhos distorcem.”
(p. 259)
“As explicações
não explicam tudo.“
“A literatura é
feita de espaços vazios a serem preenchidos por quem os interpreta,
é isto? (p.260)
José é um jovem
escritor no início da carreira literária, às voltas com a angústia
de um segundo livro que não consegue escrever. Sem dinheiro, não
resistindo ao álcool e ao jogo, endivida-se e é Bartolomeu que lhe
vai emprestando dinheiro para sobreviver. Conhece Lídia,
caboverdeana, apaixonada por Saramago e pela sua obra desde que o
conheceu numa ida do escritor à sua ilha de Santo Antão quando ela
tinha dezasseis anos. O seu interesse por José cresce quando ele lhe
confidencia que é escritor e que anda a fazer a biografia de
Saramago. Saramago é um escritor com 75 anos, em vésperas de ser
agraciado como o Prémio Nobel da Literatura.
Os livros de
Saramago que as várias personagens desta “Autobiografia”
transportam e andam a ler são os elos que as ligam: “Memorial do
Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Manual de
Pintura e Caligrafia” e por fim “Todos os Nomes” o último
livro que Saramago escreveu em 1997, ano anterior à sua celebração
como prémio Nobel da Literatura. O meu conhecimento da obra de
Saramago é ainda incompleto, mas reconheci nos nomes de Bartolomeu e
Lídia referências ao “Memorial do Convento” e a “O Ano da
Morte de Ricardo Reis”, tal como o encontro de José e de Saramago
no Hotel Bragança não foi por acaso e a cegueira que atinge Fritz
na viagem de avião a caminho de Goa para se encontrar com o pai
também não, recordando o extraordinário “Ensaio sobre a
Cegueira”. Possivelmente outras referências me escaparam!
Por fim, uma
referência ao tempo, aos lugares onde as personagens se movem e ao
papel desempenhado pelas figuras familiares. Lisboa é diversa, está
muito presente e os lugares são muito precisos: Olivais Sul,
Encarnação, Quinta do Mocho, Bairro das Colónias, Rua de Macau,
Santa Apolónia, Biblioteca Nacional, Palácio das Galveias e a
Lisboa da Expo 98. Bucelas onde a mãe de José ficou enquanto o
marido emigrou para Frankfurt na Alemanha. Azinhaga onde o pequeno
Saramago acompanhava o avô sentado à lareira, vendo e ouvindo a mãe
e a avó nas tarefas domésticas, enquanto o pai se entretinha na
taberna. Goa na Índia para onde o pai partiu, deixando Fritz e a mãe
em Viena na Áustria. Santo Antão em Cabo Verde e Quinta do Mocho.
Lanzarote, Lisboa, Madrid, Frankfurt. E Lisboa para onde José,
Saramago, Fritz e Lídia vieram viver deixando definitivamente as
suas terras da infância. As mulheres, sempre as mulheres: as mães,
as avós e Pilar, discreta, mas, solidamente presente.
Li este romance com bastante vagar. Reli certas passagens. Voltei
atrás. Demorei-me. Precisei de me entranhar nele. Senti que tinha de
continuar a descobrir o Saramago ainda não lido. Percebi que
“Autobiografia” será um daqueles livros a que voltarei um dia,
talvez para descobrir outros sentidos que uma primeira leitura não
conseguiu alcançar.
30 de Janeiro de
2010
Almerinda Bento
Do autor só li 2 livros, completamente diferentes um do outro..."Galveias" e "Dentro do Segredo". Gostava de ler "Autobiografia".
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