A escrita de Isabela Figueiredo não me desilude. Depois de “A Gorda” e de “Caderno de Memórias Coloniais”, este, que é o mais recente romance da autora, tem a fluidez e a sinceridade de um romance do quotidiano, das pessoas concretas e nem sempre visibilizadas. Logo a começar o romance, a autora aguça o interesse para a leitura do que virá a seguir: “Quando conheci a minha vizinha do lado a minha vida mudou” (pág. 19) e termina com “ninguém entra na nossa vida por acaso” (pág. 292).
Um romance sobre a solidão, as solidões. Será a solidão uma escolha ou antes fruto de alguma coisa que correu mal? As famílias que se desentenderam? Uma paixão não correspondida? Uma mágoa que não se apagou? José Viriato e Beatriz são dois recolectores: do lixo dos outros, dos “despojos de consumo excessivo” (pág. 45), de cenas, imagens, detalhes captados em fotografias. Cada um com o seu percurso. Ele escolheu viver a sua liberdade, sem conta bancária nem patrões, fazendo o seu próprio horário ao avesso do dos outros; ela enclausurou-se, rodeou-se das suas lembranças, era misteriosa, com a alcunha de “Matadora” para os vizinhos que viam nela uma personagem de filme policial. Se a avó Josefa a viver em Mafra era a única familiar de José Viriato, os cães – Nossa Senhora e Revoltado – livres como ele, eram os seus companheiros e a sua “prioridade” (pág. 87). Beatriz não tinha qualquer familiar e a única amiga que tivera – Nani – há muito falecera.
Estamos no final da segunda década de 2000, antes da pandemia, o contexto que se vive no mundo e na Margem Sul, onde vivem, é-nos recordado: a violência no Brasil de Bolsonaro, a revolta dos coletes amarelos em França, o surgimento de um partido de extrema-direita em Portugal, as incursões racistas da polícia no Bairro da Jamaica. Observador atento aos pormenores, “às miudezas” (pág. 72), sentado no Café Colina, José Viriato atenta no envelhecimento das pessoas e na triste realidade de que “destratar os velhos se tornara costumeiro” (pág. 76) o que lhe traz sentimentos de culpa, ele também pouco atento e nada presente na vida da avó, “alguém na prateleira” (pág. 78), a viver sozinha em Mafra.
As suas histórias que estes dois solitários vão partilhar um com o outro vão-nos sendo desvendadas em flashbacks e igualmente esses episódios das suas vidas vêm agarrados à história, aos tempos a seguir à revolução, as eleições presidenciais, os retornados, os anos 80 e a droga. E se o passado foi decisivo para o que eles são na actualidade, o título do terceiro e último capítulo do romance – “O passado acabou” – é o apaziguamento de duas pessoas que conseguiram ultrapassar a sua solidão, apoiando-se, sem deixarem de ser livres e independentes.
Uma bela história de superação. E de esperança. Nada escrevi aqui sobre Cristo, o primeiro cão de José Viriato e sobre a relação entre eles, tão importante em momentos difíceis no desenrolar da sua adolescência. Fico-me por algumas citações: “Ele não era a minha sombra, mas uma parte de mim” (pág. 153), “Os cães eram a única prisão na qual queria viver” (pág. 239), “O Cristo e o lenço da minha mãe foram a única bagagem que carreguei para casa da minha avó.” (pág. 203).
7 de Novembro de 2024
Almerinda Bento
Sem comentários:
Enviar um comentário