As letras estão em mim desde que entrei na Universidade Nova, em Lisboa, para estudar Comunicação Social. Foi na Elle que iniciei o meu percurso como jornalista tendo, depois disso, colaborado com outros periódicos e, mais tarde, em 2000, estreado a minha presença em televisão. Mergulhei na criação de argumentos em 2002 e, desde aí, tenho tido a oportunidade de escrever filmes, novelas, séries, entre muitos outros. Escrevi o meu primeiro romance – um romance histórico, em 2014. Madre Paula foi, de facto, a minha entrada na literatura. E foi com Uma Senhora Nunca que me iniciei na ficção de forma completa, embora este livro seja uma história com uma forte componente familiar. Este é o meu mais recente livro, lançado em abril.
Foi na minha bisavó que me inspirei para criar esta história. Conheci-a, mas nunca a conheci verdadeiramente, porque a idade avançada trouxe-lhe falta de lucidez. Lembro-me de a ver, sempre vestida de negro, muito séria, mas quase não falei com ela. Até que, um dia, numa conversa com a minha avó, soube que a minha bisavó tinha sido raptada. E foi assim que comecei a fazer perguntas atrás de perguntas, até conhecer muito melhor esta história familiar que remonta São século XIX.
Neste âmbito, aproveito para partilhar um texto inédito que complementa Uma Senhora Nunca:
O que uma senhora ainda não pode.
É difícil ser senhora. Maria Laura sabe-o bem. Todos os meses, quando recebe em casa o boletim da Mocidade Portuguesa, dedica longas horas a demolir-lhe os conteúdos, as indicações, as fotografias. A tentativa de formar uma nova elite feminina não é adequada a Maria Laura que concentra em si todo o universo feminino, elite e sem ser elite. É uma construção infinitamente mais complexa e perversa que a revisteca parola que lhe chega a casa pelas mãos da criada que a rouba ao Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, perto de casa de Maria Laura, onde anos mais tarde Lucinda, a filha da elite e sem ser elite, será uma estudante aplicada.
Maria Laura despreza a Mocidade Portuguesa. Acredita que nenhuma associação, nenhum estado, nenhum homem, sequer, lhe pode dizer o que ela sabe desde nascença: como educar os filhos, como assistir os desvalidos, como governar uma casa. Uma senhora não pode depender de outros para lhe fazerem o trabalhinho. Muito antes de se falar em ajudar os pobrezinhos, já Maria Laura alimentava e vestia cinco criadas em casa. E, obviamente, criadas que não eram ricas. Foram salvas da pobreza por Maria Laura que as trata bem, quando não trata mal. Retirar uma pessoa da pobreza dá direitos sobre ela. Direitos cristãos, é certo, bondade e ternura e paciência e a possibilidade de uma palavra mais ríspida, se for o caso, amuo por dias, olhares fixos recheados de ódio, ordens enigmáticas quase inaudíveis, tarefas difíceis e demoradas. Ninguém disse que Deus tinha bom feitio.
Das instruções que o boletim preconiza: “ser uma boa dona de casa sem maçar os outros com acontecimentos caseiros, compreensiva dos gostos e necessidades alheias, afectuosa para a família do marido, pontual, discreta com os seus amigos, económica, sincera e leal, com bom génio, dócil, séria, confiante, pouco tagarela e sem usar baton”, Maria Laura só concorda com a parte do pouco tagarela, mas mais por questão de feitio do que educação. Ela fala pouco porque uma senhora pode falar como raio quiser, desde que baixo e educadamente e só às vezes, ela não gosta de grandes grasnidos. Tudo o resto é uma perfeita idiotice, como explica ao pai, que concorda com tudo o que a filha diz, porque ela é perfeita. O que uma senhora ainda não pode é ter falta de amor paternal.
Mas Maria Laura não se senta na obrigação de cumprir com outras regras que não as que ela conhece desde pequena, desde que se reinventou e chamou a si o epíteto senhorial, à custa de puxar as veias certas do coração e desligar as que pertencem a classes mais simplórias e populares. A senhora não é pontual, a senhora faz as horas do dia. Não é económica, é rica. Não é sincera e leal, usa de todos os recursos que possui para conseguir o que quer, incluindo mentir, exagerar e até verter lágrimas de crocodilo. A senhora é um crocodilo mal humorado. Tem confiança de que a educação – fornecida através da perceptora que a acompanha em casa; do pai que tudo sabe sobre o mundo e da avó, detestável avó que a ensinou a comer como se pudesse ir amanhã jantar com um membro da realeza europeia – é a chave para uma boa vida. Uma senhora ainda não pode prescindir de regras, sob pena de se engolir no seu próprio vómito. É um balanço complicado, uma linha de água muito escorregadia: um desequilíbrio e afunda. Maria Laura não afunda, porque a mão de Deus está sempre debaixo dela. E uma senhora ainda não pode permitir-se ficar sozinha neste mundo, sem a companhia do pai e de Deus. Por isso, Maria Laura, a senhora de todas as senhoras, reza todas as noites pelas semelhantes a ela e pede, com fervor, que nunca esmoreçam na tarefa de construir o mundo. Sem as senhoras, era tudo uma cambada de ordinaríssimos. E valha-nos Deus que isso venha alguma vez a acontecer.
Patrícia Muller
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