"To kill a Mockingbird" era um livro que já me tinha sido recomendado e que foi recentemente reeditado na sequência da morte da autora, em Fevereiro deste ano, aos 89 anos.
É um livro admirável, poético, denso, sobre o qual há muito a dizer e reflectir, mas que encerra uma lição essencial: a luta contra a intolerância, o racismo e o preconceito é um caminho difícil, mas inevitável. É um livro sobre a infância, sobre o crescimento, sobre a aprendizagem do mundo dos adultos feita pela jovem Scout, pelo irmão Jem e pelo amigo Dill, colega de aventuras e brincadeiras. O facto de Scout Finch, a narradora, ser uma menina entre os seis e os nove anos permite-nos ver o mundo com os olhos límpidos que só uma criança consegue ter.
A história passa-se nos Estados Unidos, em meados dos anos 30 do século passado, num pequeno condado preconceituoso e fechado sobre si mesmo. Com uma população estratificada, sem grandes motivos de interesse para além da coscuvilhice das senhoras que se encontram para beber chá, fazer obras de caridade e frequentar a igreja, as famílias de gente pobre, ignorante e desempregada que vive paredes meias com a lixeira e a comunidade negra segregada e apenas tolerada porque é mão-de-obra indispensável nos trabalhos domésticos ou nas plantações de algodão, Scout, Jem e o pai Atticus Finch são as personagens principais de onde irradia toda a narrativa.
Scout é uma miúda demasiado avançada que aprendeu a ler sozinha e para quem a escola é um tédio, aliás como para os meninos mais pobres para quem a escola não diz nada, limitando-se a aparecer todos os anos apenas para o primeiro dia de aulas. Scout não se enquadra no padrão estereotipado da menina, nem pela maneira de vestir, nem pelas brincadeiras, nem pelas respostas que dá à professora. Educada pelo pai, um advogado da terra que vive sozinho com os filhos e com a cozinheira Calpurnia, desde sempre o relacionamento entre pai e filhos foi no sentido de desenvolver neles a autonomia, o sentido de justiça e de liberdade, não lhes dando respostas acabadas ou formatadas, antes dando-lhes a possibilidade de aprenderem com os erros e fazendo o seu próprio caminho.
Nas férias de Verão, quando têm a possibilidade de ter o amigo Dill para brincarem, é todo um mundo que se abre de imaginação, de criatividade, de descobertas, de testar limites e vencer os medos, criando o seu próprio espaço de liberdade e de novas aprendizagens. Scout não se livra, porque brinca com dois rapazes ligeiramente mais velhos do que ela, de ser chamada de "menina" sempre que se nega nalguma brincadeira ou tem alguma atitude de medo. Como antes referi é muito interessante o facto de a narradora ser uma criança, porque nos permite ter a percepção que as crianças têm dos pais e dos adultos. Para Scout, o pai que tinha 50 anos era um velho e achava que ele não fazia nada, pois passava o tempo a ler e a escrever no seu escritório e não ia à caça nem fazia nada do que os outros pais dos seus amigos faziam!
A segunda parte do livro corresponde a um período mais avançado na idade dos jovens e na entrada num período menos despreocupado da vida de Scout e de Jem. O irmão deixa de olhar para ela da mesma maneira, as brincadeiras já não são as mesmas, Jem nem sempre tem vontade de alinhar com ela, prefere estar só e nem sempre tem paciência para ela. Por outro lado, por vezes assume um papel mais protector, "resguardando-a" relativamente a certas conversas ou assuntos, o que irrita sobremaneira Scout que detesta sempre que o irmão diz "Isso, ela não percebe." E uma vez, quando o irmão a adverte para que não mate um bicho-de-conta, ela considera que o irmão está cada vez a parecer-se mais com uma rapariga.
É nesta segunda parte do livro, que Scout e Jem pela primeira vez entram no mundo da comunidade negra, que só conheciam pela sua ligação a Calpurnia, a cozinheira. A primeira vez que vão com Calpurnia à Igreja da Alforria descobrem que aquele é um mundo diferente do seu. Uma igreja despojada de adornos ou riquezas, sem livros de hinos, porque praticamente todos são analfabetos, em que se recolhe dinheiro para ajudar os membros da comunidade que estão em situação aflitiva. Mas onde, à semelhança das outras igrejas, a mulher é vista como um ser inferior e impuro, o que não passa despercebido aos sentidos atentos de Scout.
Atticus Finch é um homem só na sua luta contra a segregação e a injustiça e o ter aceitado ser advogado de defesa de um negro acusado de ter violado uma branca, incita sobre ele os ódios, a maledicência e a incompreensão de praticamente toda a comunidade branca, independentemente do estrato social. São admiráveis os capítulos que correspondem ao julgamento de Tom Robinson, o desfilar das testemunhas, os interrogatórios dos advogados de defesa e de acusação, o comportamento do juíz, do público e a enorme lição que para Scout, Jem e Dill também presentes, constitui o veredicto do júri que condena um inocente, fruto do preconceito, do racismo e da ignorância.
Esta é uma história de coragem, de integridade, optimista relativamente ao que há de bom nos seres humanos. O advogado Atticus Finch era um homem genuinamente bom, justo e íntegro, que praticava a igualdade e que acreditava intrinsecamente na bondade dos seres humanos. A única vez que Scout ouviu um dia o pai falar em pecado foi para lhe dizer que podia matar todos os gaios-azuis que encontrasse, caso conseguisse acertar-lhes, mas que era pecado matar uma cotovia. A explicação foi-lhe dada por uma vizinha: "As cotovias não fazem nada a não ser cantar belas melodias para nós. Não estragam os jardins das pessoas, não fazem ninhos nos espigueiros, só sabem cantar com todo o sentimento para nós. É por isso que é pecado matar uma cotovia."
É uma satisfação que esta obra esteja incluída na lista de livros do Plano Nacional de Leitura. Oxalá seja usufruída por muitos/as e muitos/as jovens. Uma lição admirável de cidadania.
Almerinda Bento
Um dos meus livros preferidos da vida :) Adoro!
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Sandra, a Almerinda gostou muito e eu também... Muito! Beijinhos!
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