Olho para ti e és um sorriso maléfico rasgado numa folha. Eu alimento-te com palavrinhas aglutinadas umas nas outras e tu devolves-me uma imagem vertiginosa que já não me revela a realidade. Nunca vou conseguir compensar a quantidade de amor que nutro por ti. Antes, só me queria fundir na tua essência; agora, fujo dela e refugio-me longe, nos esconderijos mélicos do mundo. Sabes que não existe vida lá fora? Tornou-se tudo de tal forma grandioso aqui dentro que já nada me satisfaz verdadeiramente na vida mundana. Olho para a estante onde nos costumávamos encontrar e vejo-te a sorrir de novo. Está um homem a dormir enrolado num lençol e nem sequer ousa mover-se. É uma criatura plácida e ternurenta. Tem os cabelos a dar-lhe quase pela cintura e os olhos negros, mas doceis. Mexe-me suavemente, eu sinto cada pedaço de toque, mas tremo quando penso que, rapidamente, vou querer que ele saia da minha cama e que a minha solidão me engula. Se eu rasgar um pedaço de papel e sentir o impulso do vómito, a única coisa de que vou precisar para escrever é ter-te ligado à minha mão. Consegues sorrir de todo o lado, tens a boca mais larga do mundo. A minha mão vai sendo dominada por ti. Já não tanto. Como é que se domina um ser que está morto? Não há felicidade nenhuma quando as palavras não me transbordam do interior. Quero fundir-me em tudo, mas já não existe nada com
que o consiga fazer. Se fugir para a imensidão da rua, vou ser agredida pelo ar frio e a cidade vai parecer desabitada e vazia. Qual é credibilidade de um corpo quando ele já não te diz nada, quando já não existe desejo? Mesmo no sono, consegue chamar por mim. Nunca se cansa. Alguém precisa de lhe dizer que o caminho para o coração de um escritor é dar-lhe tudo aquilo que o vai enlouquecer, alimentá-lo na boca com delírio. Dá-me a minha imaginação. Por favor! Dá-me a novidade, dá-me a tristeza. Dá-me qualquer coisa que pulse, incontrolavelmente, aqui dentro. Como é que uma rapariga magnífica e interessante como tu se tem em tão desconsiderada conta? Eu não sei. Verto duas lágrimas. Sou beijada. Como é que tu sabes?
Lá estou eu novamente, na mesma sala, com a ponta dos dedos a mexer na pele do pescoço dele e a pensar em muitas coisas. Olho em redor e isto não é uma sala, nem é um quarto, nem é a minha cama, nem há homem nenhum. Está uma criatura sozinha com uma caneta na mão a definhar. Vou fechar os olhos. Vou esquecer-me.
O que eu penso que existe lá fora não passa de um conjunto de normas sociais progressivas que agem sobre coisas e que, ao fim de uns quantos anos de existência, vão formalizar o que todos intitulamos, tão estupidamente, uma história. Gostava que eles soubessem ao que é que uma história realmente sabe. Gostava de saber ao que é que a vida deles realmente se cinge. Os meus limites já estão tão altos que daqui irei tombar, imparável, em direção ao chão. Uma vida no subsolo na companhia dos outros renegados. Mas eu sou, cordialmente, aceite. Nos meus olhos, a leitura da verdadeira essência que me constitui só é identificada por um conjunto muito reduzido de indivíduos que procuram em mim aquilo que o meu corpo não lhes dá, aquilo que eu escondo deles, porque senão nunca haveria amor. Porque teriam medo de mim ou eu teria medo deles. Dói-me o corpo porque já não o suporto. Eu não gosto de falar de mim. Quando me estão a atravessar, esqueço-me que o corpo tem sensações e que o
cérebro é quem as fomenta e fundo-me em tudo. O que é que tu fizeste? Eu não fiz nada, ele é que fez - digo, com a mão encostada à cabeça. - A culpa é dele. Tira-o daqui.
Patrícia Ribeiro
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