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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A Escolha do Jorge: Pudor e Dignidade

Aprecio consideravelmente a literatura nórdica com incidência nos autores da transição do século XIX para o XX e no caso específico dos escritores noruegueses não posso deixar de indicar Knut Hamsun, o meu escritor de eleição, entre outros autores que à medida que vou tendo o prazer de conhecer vão fazendo parte da família dos meus autores preferidos e que em certa medida constituem uma referência nas letras e na cultura daquelas latitudes.
Em relação a Dag Solstad (n. 1941) é um dos grandes nomes da literatura norueguesa atual, cujo nome se pode juntar a nomes como Per Petterson ("Cavalos Roubados", "Maldito seja o Rio do Tempo") e Lars Saabye Christensen ("O Meio-Irmão", "Herman", Beatles"). Para quem teve a experiência da leitura de alguma(s) das obras acima indicadas certamente teve a sensação de mergulhar num mar de emoções que chegam a tocar-nos de forma que dificilmente esquecemos alguns dos personagens e parte das histórias. O aspeto intimista, melancólico e a forma delicada em que os personagens são apresentados são características que deixam o leitor agarrado a estes livros desde a primeira página até ao fim.
A experiência com a leitura de "Pudor e Dignidade" de Dag Solstad não só reflete os aspetos acima indicados como dá a conhecer ao leitor uma forma diferente de escrita, uma escrita cujo estilo e forma de contar as histórias é bem capaz de se demarcar dos outros nomes referidos. Lendo as primeiras páginas desta pequena obra rapidamente somos confrontados com a ideia de que "isto é bom". Estranhamos de alguma forma o modo repetitivo e circular de recuperar as ideias e episódios mencionados anteriormente, mas cedo nos apercebemos que essa é a estratégia de tornar esses mesmos episódios ainda mais presentes, de modo mais vincado.
"Pudor e Dignidade" conta-nos a história de Elias Rukla, professor de norueguês há vinte e cinco anos numa escola secundária de Oslo, ensina aos seus alunos algumas das obras dos grandes nomes da literatura norueguesa, a saber, Bjornson, Kielland, Garborge Ibsen, cuja obra "O Pato Selvagem" está precisamente a trabalhar com a sua turma de finalistas. Knut Hamsun e Sigrid Undset (Prémio Nobel de Literatura em 1920 e 1928, respetivamente) também não são esquecidos por Elias Rukla nesta alusão aos grandes escritores do seu país.
A narrativa é passada apenas durante uma parte do dia e nesse mesmo período Elias Rukla revisita todo o seu passado. Partindo de um pequeno aspeto de ‘O Pato Selvagem’ de Ibsen, Elias Rukla no decorrer da sua aula com a turma de finalistas do ensino secundário vislumbrou ao fim de vinte e cinco anos o verdadeiro significado desse pequeno detalhe acabando por ter um impacto decisivo nos acontecimentos que tiveram lugar após a aula conduzindo à antevisão de toda a sua vida como uma espécie de balanço que culmina na iminente desgraça em termos profissionais e com consequências sérias ao nível familiar.
Um simples aspeto banal do quotidiano vai alterar totalmente o estado de espírito de Elias Rukla passando do seu estado calmo e melancólico ao descontrolo e raiva iminente que culmina na agressão verbal a uma aluna da sua escola. Tudo isto aconteceu porque o guarda-chuva não abriu quando Elias Rukla estava a sair da escola!
A descrição dos acontecimentos inesperados envolve de tal forma o leitor que é catapultado para aquele cenário de tensão face a um pequeno nada e que marcou toda a diferença na precipitação dos acontecimentos que se seguiram. Esta sucessão inesperada dos acontecimentos em escassos minutos na vida de Elias Rukla pode ser descrita pela passagem/transformação de três estados diferentes ‘calma-tensão-raiva’ que têm em "Pudor e Dignidade" o epicentro da narrativa.
O próprio Elias Rukla não compreende como passou de um estado ao outro, embora tenha a consciência de que a sua vida profissional e familiar chegou a uma encruzilhada. Na iminência de perder o emprego e o respeito dos alunos e colegas da sua escola, Elias Rukla toma igualmente consciência que face a uma situação insólita como a descrita, toda a sua vida pode desagregar-se colidindo com as expectativas da sua esposa que passados tantos anos de casamento decidiu investir nos estudos já com uma idade próxima dos 50 anos na medida em que o orçamento familiar apenas permitiu que Elias Rukla investisse na sua carreira profissional.
No decurso de "Pudor e Dignidade", o balanço da vida de Elias Rukla passa pela revisitação de outros grandes nomes da literatura do século XX como Kafka, Proust e Thomas Mann. A relação com cada um dos escritores foi determinante em certos momentos ou fases da vida de Elias Rukla, mas é com Thomas Mann que mais se identifica no momento. Há um momento de ouro em "Pudor e Dignidade" quando Elias Rukla inventa uma conversa com Thomas Mann ao ponto de se imaginar como um dos personagens romanescos do escritor alemão.
Se "Pudor e Dignidade" é uma viagem por alguns dos grandes nomes da literatura ocidental, é também um livro sobre a vida, sobre a angústia permanente que se pode sentir face àquilo que sabemos objetivamente na relação com os outros, mas também as dúvidas que surgem, as questões existenciais, por vezes a dor face ao que ainda não conhecemos e que tememos.

Excertos:
"Quando chegou à porta da rua, reparou que tinha começado a chover. Não muito, apenas uns chuviscos, mas o suficiente para que ponderasse se havia ou não de abrir o guarda-chuva, em todo o caso não se molharia muito durante o curto trajecto até casa. Mas uma vez que tinha trazido o guarda-chuva pela manhã, decidiu-se a usá-lo. Tentou abri-lo, mas não funcionou. Carregou no botão que o faria abrir automaticamente, mas não aconteceu nada. Voltou a carregar no botão com mais força, mas voltou a não acontecer nada. Não, só me faltava esta, pensou com amargura. Experimentou uma terceira vez, mas sem resultado. Em seguida tentou abrir o guarda-chuva à força, mas tão-pouco resultou, o guarda-chuva oferecia tal resistência que mal conseguiu que as varetas se esticassem. Nesse momento sentiu-se avassalado. Encontrava-se no pátio da Escola Secundária de Fagerborg, durante o intervalo, a tentar abrir o guarda-chuva. Mas não o conseguia. Havia centenas de alunos em redor, e alguns deles deviam tê-lo visto. Agora tinha atingido o limite. Apressou-se em direção ao bebedouro e bateu com o guarda-chuva na pedra num acesso de fúria selvagem. Bateu e bateu com o guarda-chuva contra o bebedouro, e sentiu que o metal do varão começava a ficar amolgado e que as varetas se quebravam. Isto satisfê-lo e continuou a bater e a bater. Através de uma espécie de neblina viu que os alunos se iam aproximando, lentamente, em profundo silêncio, encontrando-se agora à sua volta num semicírculo, mas a uma distância respeitosa. Continuou a bater com o já amolgado e rebentado guarda-chuva contra o bebedouro numa fúria selvagem. Quando se apercebeu de que as varetas começavam a soltar-se, atirou o guarda-chuva ao chão e começou a saltar-lhe em cima antes de usar o calcanhar para tentar desfazê-lo. Depois voltou a apanhar o guarda-chuva e a bater com ele uma vez mais contra o bebedouro – as varetas, que já estavam partidas e indomáveis de tão retorcidas, espetavam-se cada uma para seu lado, e algumas fizeram-lhe golpes tão profundos na mão que viu como o sangue começava a brotar das feridas. Estava rodeado de alunos por todos os lados, alunos dissimulados, silenciosos e com olhos arregalados. Estavam à volta dele imóveis, boquiabertos, mas ainda a uma distância respeitosa. Alguns deles tinham comida na mão, pois encontravam-se no intervalo do almoço. Como se vislumbrasse através de uma neblina, conseguiu distinguir as caras dos que estavam à frente e, parece estranho dizê-lo, de uma forma curiosamente nítida. Apercebeu-se de uma rapariga loura e crescida que o olhava admirada, tal como o olhavam dois rapazes da turma de finalistas, cujas expressões faciais, ridiculamente perplexas, aumentaram ainda mais a sua fúria. Arregalou os olhos para a rapariga loura e crescida, e gritou-lhe: Imbecil! Come a tua comida, gorda sebosa! E no mesmo instante agarrou no guarda-chuva negro e despedaçado e foi em direcção a eles de costas encurvadas. Afastaram-se para os lados quando se abeirou, afastaram-se com rapidez, de modo que pôde passar cambaleante pelo meio deles, continuar a atravessar o pátio vazio e molhado pela chuva, sair da escola e descer a Rua Fagerborg. Livre, por fim livre, longe deles! Caminhava precipitadamente, num ritmo violento e convulsivo, que dizia com a sua agitação interior. E foi ainda nessa disposição anímica que começou a lamentar-se quando se deu conta do que tinha feito." (pp. 40-42)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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