Num espaço de um mês este é o segundo livro que leio desta escritora ucraniana de ascendência judia que faleceu prematuramente num campo de extermínio nazi em 1942. Como já em publicação anterior sobre “O Baile” referi, esta repetição e revelação deveram-se à escolha desta autora e do livro “As Moscas de Outono” para o encontro de Junho do Clube de Leitura de Leia Mulheres Lisboa.
Também este é um pequeno livro, muito conciso, que conta a história dos Karine que, de alguma forma, tem paralelismo com a vida de Irène Némirovsky. Trata-se de uma família abastada que tem de fugir na sequência da revolução russa, passando por Odessa, Marselha e finalmente Paris, que vive nessa altura a chegada da primeira vaga de emigrantes russos. A família Karine vive numa casa insalubre, mas, com o tempo, vai-se habituando à cidade, ao clima e à população, apesar de as condições de vida no exílio em nada se assemelharem às que deixara na Rússia. No entanto e como é apanágio de quem é forçado a exilar-se, a adaptação não é sem dor e nos diálogos dos diversos membros da família Karine perpassa o desespero, a tristeza, a saudade. “A vida, insensivelmente, organizava-se” (pág. 78), eles tinham as suas rotinas “jantavam à pressa, deitavam-se e dormiam sem um único sonho, derreados pelo afanoso dia de trabalho” (pág. 72). “Eles, (os Karine) iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, voam penosamente, exaustas e arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas” (pág. 52). Ao contrário, Tatiana Ivanovna que era ama da família há 51 anos, não consegue adaptar-se à mudança e vive do passado, da sua amada terra, das recordações e da saudade dum tempo que terminou. Sobretudo, faltava-lhe a neve da sua terra distante. “A velha sorria, fechou os olhos. Tinha nascido numa zona rural, longe dos Karine, no norte da Rússia, e para ela nunca havia demasiado gelo nem demasiado vento.” (pág. 25). A incompreensão de Tatiana por atitudes da jovem Loulou “És demasiado velha, não podes compreender” (pág. 60) e até a forma como a família encarava o assassinato ainda recente de Youri “uma tristeza enregelada” (pág. 63) fazem da velha ama uma personagem singular e, quanto a mim, central nesta obra. O seu alheamento num mundo em que não se consegue integrar são a sua forma de sobreviver.
Apenas um detalhe que achei interessante. O romance começa num Natal antes da revolução, quando Youri e Cyrille partem para a guerra e Tatiana se despede deles enquanto prepara as suas malas e termina em Paris, na noite de Natal quando os Karine saem para festejar em casa de amigos deixando a velha Tatiana em casa. É um ciclo que se fecha na noite de Natal.
Este romance, com tradução do francês de Diogo Oliveira Paiva, tem belíssimas descrições de ambientes e de estados de alma e revela uma enorme capacidade da autora em analisar as pessoas, conferindo-lhes densidade e autenticidade. Tal como “O Baile”, este “As Moscas de Outono” não mede o seu valor pela quantidade das páginas. Muito bom.
1 de Julho de 2025
Almerinda Bento
Fica a sugestão 👏
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