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quarta-feira, 10 de maio de 2023

A Convidada Escolhe: "O País debaixo da minha Pele"


O País debaixo da minha Pele, Gioconda Belli, 2010

Este livro de “memórias de amor e guerra” é um testemunho vibrante de uma mulher – desde a infância até ao ano 2000 – que muito cedo se emancipou, que conheceu “a alegria de abandonar o «eu» para abraçar o «nós»” e que escreveu “estas memórias em defesa dessa felicidade pela qual a vida e até a morte valem a pena”, como escreve na introdução ao livro. Apesar das vicissitudes, é um testemunho de esperança pois “O importante, percebo agora, não é ver cumpridos todos os sonhos, mas sim continuar, teimosamente, a sonhá-los.” (pág. 421).

Gioconda Belli foi activista da Frente Sandinista de Libertação da Nicarágua. Proveniente de uma família da burguesia nicaraguense, a sua família era, no entanto, opositora à ditadura de Somoza que vigorou entre 1934 e 1979. De personalidade forte e apaixonada, desde nova quis tornar-se independente o que a levou a casar-se muito jovem e a trabalhar. Mas, ao longo da vida percebeu que ser independente é uma realização difícil e, como nunca se acomodou, não temeu fazer cortes com o “sossego” e com as expectativas que a sociedade reserva para as mulheres. Apaixonada e rebelde, não temeu afrontar a família, o marido, os camaradas de luta, os amantes, a sociedade. Por isso se apaixonou perdidamente, escreveu poesia sem amarras, participou em acções de grande perigo, discordou de orientações políticas da FSLN sempre que achava que estavam erradas, questionou o machismo dentro da organização e ao mais alto nível da liderança e no seio de outros países que, advogando a libertação de homens e mulheres, as subalternizavam ou apagavam… Nos anos 70, a revolução e a poesia irromperam na sua vida em oposição à ditadura e a um casamento sem chama. “Tinha criado asas. Sentia-me capaz de voar sozinha.” (pág. 76) Muito sincera neste seu testemunho de vida, não deixa de referir a sua ingenuidade, os momentos de desalento, os sentimentos de culpa quando tem de fazer escolhas definitivas e dolorosas.

Como refere logo a abrir a Introdução “Duas coisas que não escolhi determinaram a minha vida: o país onde nasci e o sexo com que vim ao mundo”. A lupa de género com que analisa inúmeras situações da sua vida é extremamente interessante, tanto mais que ela viveu no período da guerrilha papéis que a puseram ao mais alto nível do perigo e da responsabilidade. Sendo poeta, intelectual e mulher, conseguiu ter uma posição privilegiada que lhe permitiu mover-se de forma insuspeita em certos meios. Mas, após a revolução e no interior da organização, aparecia apagada atrás do chefe, uma subalterna, uma funcionária, não poucas vezes perfeitamente consciente de que se deixava apagar e anular submetida à paixão pelo chefe.

A narrativa é-nos apresentada sem ordem cronológica em dois momentos da vida da autora. Na Nicarágua, no exílio no México e na Costa Rica ao longo dos anos 70 e 80, período em que milita na FSLN e a partir dos finais dos anos 80 e 90 quando, casada com um cidadão norte-americano, vive alternadamente nos EUA e na Nicarágua. Para nos permitir uma melhor compreensão da sua narrativa, Gioconda Belli apresenta uma breve cronologia da história da Nicarágua desde a chegada de Cristóvão Colombo ao território da América Central em 1502, o período da longa ditadura somozista, vitória da FSLN em 1979 até à sua derrota nas eleições de 1990 e a chegada de Violeta Chamorro ao poder. Território estratégico sempre debaixo da cobiça dos governos dos EUA, a Nicarágua é sujeita a uma ofensiva feroz do governo de Donald Reagan com manobras militares provocatórias e sanções económicas duríssimas que minaram uma revolução politicamente frágil e cheia de debilidades sociais, em que a pobreza, o analfabetismo e as necessidades básicas eram profundas. A felicidade colectiva dos primeiros momentos precisava de ver respondidas tarefas gigantescas. Mas a improvisação, a ingenuidade e impreparação dos guerrilheiros, também eles minados por divisões, não conseguiram lograr que a revolução sandinista resistisse por muito tempo. Gioconda Belli não deixa de referir a imensa solidariedade internacional de muitos intelectuais de todo o mundo à causa nicaraguense, quer durante a luta contra a ditadura, quer já no período da revolução vitoriosa e o extraordinário empenho militante e voluntário da juventude da Nicarágua nas acções de alfabetização e nas campanhas do café.

Este livro apaixonante, traduzido por Rui Pires Cabral, chegou-me às mãos por oferta de uma amiga cuja sobrinha, através da venda deste livro, angariou fundos para ir fazer voluntariado numa escola para crianças desfavorecidas na Colômbia. Nunca tinha ouvido falar de Gioconda Belli; aliás, nunca tinha lido nenhum autor nicaraguense e só através deste livro fiquei a saber que Gioconda Belli tem recebido inúmeros prémios literários pela sua obra poética e pelos romances.

Estas memórias terminam no ano 2000, quando Gioconda Belli vivia entre o seu país amado, a Nicarágua, e os Estados Unidos da América, o país do seu último marido. Neste ano de 2023, Gioconda Belli vive actualmente em Espanha, tendo aceitado a oferta do presidente Gabriel Boric do Chile para se naturalizar chilena. Com efeito, ela e mais de trezentos cidadãos da Nicarágua têm sido perseguidos e perderam a nacionalidade ao longo dos últimos cinco anos, na sequência da repressão e silenciamento de todas as vozes dissidentes, por um governo dirigido por Daniel Ortega, antigo combatente e dirigente sandinista que como ela ajudaram a derrubar a ditadura de Somoza. As voltas que o mundo dá!

6 de Maio de 2023

Almerinda Bento

3 comentários:

  1. Bom dia. Escrever um livro abandonando o "EU" e abraçando o "NÓS", dá a ideia de ficar um livro excitante e encantador de ler
    *
    Beijinho

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  2. Um livro muito interessante, não só pela história pessoal mas também pela história de um país.

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