
Mylia vive a dor física de uma doença que os médicos dizem ir matá-la num curto espaço de tempo. Só um milagre poderia salvá-la, porque a medicina nada poderá fazer por ela. Para tentar atenuar a dor, sai e percorre a cidade à noite à procura de uma igreja, só que àquela hora as igrejas estão fechadas e então sobrevem-lhe uma dor maior, a da fome. Alguém que ela encontra no caminho lhe diz que não é aconselhável ela andar por aquele sítio à noite, porque é perigoso. Mas para ela, cuja doença é irresolúvel, que perigo é andar ali à noite na rua? Esquizofrénica, em tempos depositada num hospício de referência pelo ex-marido, um médico e investigador de renome considerado cidadão do ano, onde foi despojada da sua personalidade, do seu eu mais profundo e mutilada sem que para tal lhe pedissem autorização, era ali na rua que estava o perigo?
As restantes personagens que naquela única noite cruzam as suas vidas e os seus destinos estão muito bem caracterizadas, mas sem ter a intenção de resumir seja o que for, gostaria de me debruçar sobre um aspecto que para mim surgiu como fulcral no livro e que tem a ver com a fronteira entre o normal e o patológico, onde está o bem e onde começa o mal, o que é violência e o que não é. Para Ernst, que nunca mais conseguiu esquecer o hospício Georg Rosenberg e Gomperz, o médico gestor da instituição que lhe suscita nojo e repulsa, a coisa mais perturbante era a pergunta que constantemente faziam aos utentes: “Em que é que está a pensar, meu caro?”. Aí, para quem tinha como função regular os comportamentos dos loucos, o importante era saberem o que eles estavam a pensar, para os poderem despersonalizar, controlar, aniquilar; quaisquer manifestações de afectividade eram consideradas imorais e reprimidas. A questão da ausência de direitos por parte das pessoas com algum tipo de deficiência, nomeadamente os direitos sexuais e reprodutivos, que surge neste “Jerusalém” fez-me recordar outros dois livros que também me impressionaram bastante: “O Vento Assobiando nas Gruas” de Lídia Jorge e “O Meu Irmão” de Afonso Reis Cabral.
E Theodor Busbeck, ex-marido de Mylia, renomado médico e investigador, interessado em perceber e estudar o horror a partir dos genocídios ocorridos na história da humanidade acabou por produzir uma tese que profetizava que povos iriam no futuro ser exterminadores e quais iriam ser exterminados! O absurdo da tese, resultado de muitas horas de investigação, suscitou imensa controvérsia, mas houve alguém com discernimento que apelidou o seu autor de louco e o aconselhou a internar-se no hospício onde a ex-mulher tinha estado!
Termino com a referência aos prémios alcançados por este romance que pertence à série O Reino: Prémio Ler/Millenium BCP 2004, Prémio Literário José Saramago 2005 e Prémio Portugal Telecom de Literatura 2007 (Brasil).
15 Fevereiro de 2018
Almerinda Bento
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