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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A Escolha do Jorge: “Requiem por um Sonho”

Publicado em 1978, “Requiem por um Sonho” de Hubert Selby Jr. (1928-2004) conhece agora a sua edição portuguesa através da Antígona.
      Passado no Bronx, na década de 70, esta narrativa centra a sua atenção em quatro personagens, de forma contínua e intensa, tornando-os quase tangíveis.
      Realista, cru e alucinante, “Requiem por um Sonho” transtorna qualquer leitor que mergulha neste universo da busca do sonho americano e que termina num verdadeiro flop. Uma viagem sem retorno em que o desespero face a uma vida desprovida de emoções e sentimentos porque o vazio e a falta de sentido imperam fazendo o seu livre curso.
      Sara, uma mulher viúva, com tradições judaicas que se dissolvem na cultura americana, é viciada na televisão e acredita piamente que será chamada para participar num concurso de televisão e que, em função disso, granjeará fama e dinheiro. Sara prepara-se para o grande momento e, para isso, decide mudar de imagem. Pinta o cabelo e perde peso para poder voltar a usar o seu vestido preferido, aparecendo, assim, na televisão, causando furor.
      A ansiedade e a expectativa face à eminência de aparecer na televisão vai contrastar com a indiferença da sociedade, acabando por desenvolver uma esquizofrenia paranoide, cujo tratamento, à época, funcionava com choques eléctricos. O sonho de Sara em aparecer na televisão é, pois, substituído por um hospital psiquiátrico.
      Harry, o filho de Sara, e o seu amigo Tyrone, sonham em ganhar dinheiro fácil à conta dos toxicodependentes. Compram a melhor heroína para a venderem através de uma complexa rede de viciados e de esquemas nem sempre fáceis. Mais do que traficantes, Harry e Tyrone, são também eles, consumidores. Não perdem uma oportunidade para tomarem a sua dose diária. É o ciclo vicioso e alucinante do mundo da droga. Harry e Tyrone acreditam que é desta vez que vão fazer uma boa maquia. Conseguiram bons fornecedores e consumidores viciados não faltam. Mas este mundo está sempre a mudar as regras e quem manda, também. Entre as somas avultadas alcançadas com a venda das
doses a outros toxicodependentes e o consumo próprio excessivo, Harry e Tyrone nunca passam de meros peões neste mundo cão onde acabam por serem engolidos, mais tarde ou mais cedo.
      Esta ideia de, agora é que vai ser, agora é que vamos ser grandes e ganhar um bom dinheiro, não passa mesmo de um sonho, porque até mesmo os sonhos por vezes transformam-se em pesadelos e aquilo que mais se deseja, acaba tantas vezes por se transformar no seu contrário.
      Há ainda Marion, a namorada de Harry, conhecedora de arte e com estudos feitos na área, sonha em abrir um negócio relacionado com arte à conta do dinheiro que Harry jamais ganhará através da venda da droga. Marion, também toxicodependente, talvez a mais “agarrada” deste grupo, vê-se, não poucas vezes, a prostituir-se para conseguir a sua dose diária de heroína.
      Sonhos grandes, imensos, mas todos caem por terra, estilhaçando-se como uma garrafa de vidro que escorrega das mãos. Todos os personagens estiveram lá quase, quase. Sonharam muito, mas a vida trocou-lhes as voltas. A questão é que fizeram tudo ao contrário perante a vã ilusão do sonho americano.
      Também o leitor não sai ileso com a leitura de “Requiem por um Sonho”. Mergulhamos neste livro e, simultaneamente, numa realidade que só nos anos 80 e 90 passámos a ter o eco das transformações socioeconómicas do pós-25 de Abril, com a conquista da democracia. Ganhos houve, claro, a liberdade, indiscutível, mas tudo o que a liberdade também trouxe consigo, apenas com o atraso de anos face a outros países.
      Em todo o caso, “Requiem por um Sonho” é um livro audaz, inteligente, que concentra a sua atenção e energia em quatro personagens com um imenso paralelismo com a actualidade, independentemente dos temas em análise.
      A ideia de materialismo fácil como condição da felicidade é um tema actual. A obra tem muito de psicologia, sociologia, mas também de história e de antropologia em última instância. A condição humana continua a ser o cerne da questão em tantas obras literárias e, neste caso em particular, o autor Hubert Selby Jr. sabia daquilo que escrevia, conhecia a fundo o meio, a realidade crua e cruel de Nova Iorque nos anos 70.
      Do ponto de vista literário, Hubert Selby Jr. apresenta um estilo muito próprio, misturando os diálogos dos vários personagens, num contínuo de conversas, fugindo ao registo clássico da apresentação formal, gráfica. Não esquecendo ainda a mistura dos complementos, directo e indirecto, numa amálgama de conversas entre os personagens e o narrador.
      Este estilo muito próprio do escritor não facilita a vida aos tradutores e, não resta dúvidas, que quanto a esta edição de “Requiem por um Sonho”, não só a Antígona coloca no mercado português uma obra invulgar com grande fulgor, mas também o reconhecimento de um tradutor, Paulo Faria, que consegue, também ele, transformar esta tradução numa obra de arte. 
      O leitor rapidamente perceberá do “monstro” que tem nas mãos e do desafio imenso que terá sido traduzir uma obra com tamanha complexidade, para que faça sentido em português, termos e expressões e, sobretudo o calão muito específico, utilizado ao longo de mais de 300 páginas.
      E porque tantas vezes os tradutores são esquecidos no contexto das obras publicadas, deixo aqui o meu apreço ao tradutor Paulo Faria que fez um trabalho inigualável e meritório.

Excertos:
“Começamos a sentir a apatia do dia a dissipar-se aos poucos quando os canhestros e os quadradões chegam todos a casa do seu emprego das 9 às 5 e se sentam à mesa para jantar com a mulher e com os putos, a mulher sempre com aquele ar de gaja já nas lonas, de cabelo na cara e rabo descaído, a atirar para cima da mesa a mesma mistela do costume, e os macacos dos putos, raios partam os gajos, a berrarem e a lutarem uns com os outros porque ele tem um bife maior que o meu e ele tirou mais manteiga do que eu e o que é hoje a sobremesa, e depois do jantar o homem agarra numa lata de cerveja e senta-se em frente à televisão e grunhe e peida-se e palita os dentes a pensar lá com os seus botões que devia mas era sair de casa e engatar uma gaja boa, mas ‘tou demasiado cansado, e por fim lá entra a patroa na sala e deixa-se cair no sofá e diz a mesma coisa todas as noites. Nunca muda. O què que ‘tás a ver, querido????” (pp. 27-28)

“Acho que é um dos problemas deste nosso mundo de hoje, ninguém sabe quem é. Toda a gente anda às voltas, à cata duma identidade, ou a tentar pedir uma de empréstimo.” (p. 157)

“Foram a uma casa de banho pública numa estação de metro, trancaram a porta e queimaram um monte de papel higiénico para se aquecerem, depois encheram as seringas com água da retrete manchada e nojenta e deram o caldo e ficaram ali encostados às paredes do cubículo, a sentirem o calor da droga a derreter-lhes o gelo no sangue e nos ossos, depois limparam o suor dos rostos e olharam-se com um sorriso e trocaram uma palmada dá-cá-mais-cinco, Istè castanha da boa, meu. Bruxo, chavalo, é porreira, porreira. Saíram da casa de banho e desceram os degraus até ao cais da estação do metro, sentindo-se quentes e em segurança e em segurança.” (pp. 231-232)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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