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quinta-feira, 14 de setembro de 2017
A Escolha do Jorge: "Quinzinzinzili"
"Se a razão é o auge da loucura, hoje quero ser eminentemente racional." (p. 15)
“Quinzinzinzili” do francês Régis Messac (1893-1945) é a mais recente proposta da Antígona que, à semelhança de outras obras do seu catálogo, apresenta pela primeira vez em língua portuguesa uma distopia para se juntar a “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” de George Orwell ou “Kallocaína” de Karin Boye.
Publicado em 1935, “Quinzinzinzili” apresenta-nos um planeta numa era pós-apocalíptica, atendendo à visão do autor naquilo que percebia ser a conjugação das várias forças políticas e a tendência do Mundo à época. A guerra seria algo inevitável e percebem-se as manobras políticas no início da obra. Os donos do poder, os loucos que nada perdem em levar o mundo à sua destruição, mas que também nada ganham, no fundo. As alianças, as influências, os jogos de bastidores, a guerra que teve lugar, afinal de contas. Mas Régis Messac foi mais longe! Na sua (ante)visão, o autor, em tom bastante cómico e irónico, vai simplificar a vida a toda a gente, aos ditadores, aos políticos em geral e aos habitantes do planeta. A solução será mesmo aniquilar de vez com o planeta
graças à criação de um “gás hilariante” que destruirá por completo a humanidade e de preferência que a humanidade morra a rir. Assim aconteceu nesta narrativa. Salvaram-se umas dez pessoas, um tutor e os adolescentes que faziam uma visita de estudo algures por cavernas esconsas.
A partir daqui assistimos ao ressurgimento da humanidade que se ergue a partir dos escombros, das sobras, das memórias daquilo que se chamava outrora civilização.
Através de descrições que variam entre a comédia, o caricato, o absurdo e até o surreal, o narrador (o tutor) vai-nos dando conta das transformações linguísticas que têm lugar, os ajustamentos que são feitos a partir da nova realidade. Como será a humanidade no futuro? Estes jovens sobreviventes que são apontados pelo tutor como perfeitos idiotas, ignorantes e tudo o mais que não abona a seu respeito, questiona o tutor várias vezes se não teria sido preferível não ter sobrevivido ninguém ao “gás hilariante” porque, tendo em consideração os valores por que estes jovens se passam a reger, é lícito questionar como serão as gerações vindouras. Mais, em tom deveras cómico, será interessante perceber que estes sobreviventes serão olhados como os pré-históricos de toda uma civilização que agora se ergue das sombras ou escombros da anterior.
Para além da linguagem, os jogos das palavras, o simbolismo, numa era pós-apocalíptica, há que prover aspectos essenciais à manutenção de toda uma geração, tais como, o alojamento, os mantimentos e a reprodução. Num contexto de sobrevivência, não deixa de ser interessante que a conjugação destas necessidades básicas, primárias e que remontam ao homem pré-histórico, articulam-se igualmente com a afirmação de certos indivíduos que acabam por se transformar em líderes do grupo. Um líder é necessário porque vai querer sobreviver não importando os seus actos no que concerne à luta pelos alimentos e pelo acasalamento ainda que sem uma perspectiva ou noção de família e reprodução em si mesmas. Os actos de sobrevivência são muito anteriores à moral e à ética. As inimizades geradas pelas questões de sobrevivência falam sempre mais alto e em primeiro lugar, acontecendo com naturalidade porque é algo inerente ao ser humano.
Ousado, divertido, polémico e complexo, “Quinzinzinzili” apresenta-se como uma lufada de ar fresco no contexto das edições deste ano na medida em que leva o leitor a questionar a sociedade contemporânea e o mundo em que vive. Podemos até substituir os nomes que surgem no início da obra, anteriores ao “gás hilariante” e também, nós, podemos dar uma valente gargalhada se substituirmos esses nomes pelos nomes dos actuais líderes políticos a nível mundial, tentando assim compreender para onde caminhamos neste momento. Uma nova guerra ou uma ameaça apocalíptica, está tudo em aberto. O certo é que vivemos numa permanente “guerra fria” que ora esfria, ora torna-se mais acesa e intensa. Sejam quais forem os jogos e maquinações políticas, olhamos para trás e compreendemos que as democracias ocidentais promovem e legitimam elas próprias os seus loucos governantes que arrastam atrás de si toda a humanidade.
Seja qual for o caminho que a humanidade esteja a trilhar, é sempre esse o destino que a mesma constrói, arrastando tudo e todos para um precipício maior ou menor, de construção ou de destruição. “Quinzinzinzili” é isso mesmo, é o questionar continuamente o destino da humanidade.
Excertos:
"Mas estou enganado. Completamente enganado. Morri, e as minhas ideias, os meus gostos, o meu ideal estético também morreram. Limito-me a sobreviver a mim próprio, a sobreviver a tudo o que eu era. Sou um sobrevivente das épocas pré-históricas, literalmente um fóssil vivo." (p. 107)
"Eu também sou uma personalidade importante. Num Estado que conta, por acaso, com sete habitantes no total. Mas que é tão vasto como o planeta inteiro.
Um Estado que não é melhor do que os outros. Mas que também não é pior, no fundo. A estupidez humana nunca muda. Não foi a extrema estupidez das personalidades importantes do antigo mundo que provocou a catástrofe responsável pelo novo mundo?
Em suma, o meu título de Guardião do Isqueiro vale tanto como qualquer outro.
(…)
Quando penso no futuro, vejo um novo calvário colectivo, uma nova ascensão penosa e dolorosa em direcção a um paraíso ilusório, uma longa série de crimes, de horrores e de sofrimentos.” (pp. 136-137, 157)
Texto elaborado por Jorge Navarro
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