A publicação de “O Coração do Homem” de Jón Kalman Stefánsson encerra a trilogia iniciada com “Paraíso e Inferno” (2013) e “A Tristeza dos Anjos” (2014). A trilogia foi publicada na íntegra pela Cavalo de Ferro que nos apresentou mais um autor islandês desconhecido do público português e que em Setembro último foi um dos convidados do “Folio” – Festival Literário de Óbidos.
Tendo como cenário o branco da neve e do gelo que ocupa uma boa parte do ano a Islândia, “O Coração do Homem” apresenta-se como a parte da trilogia em que o homem dá um passo em frente na forma como domina a natureza tentando, na medida do possível, tirar partido desta para seu próprio benefício e desenvolvimento do país-ilha. Passado na transição do século XIX para o século XX, este romance apresenta-nos uma Islândia que, progressivamente, se vai afirmando, ainda que de forma tímida, face aos demais países nórdicos, como um ponto estratégico na relação com as outras economias da região.
O incremento da economia da Islândia permite a abertura do país-ilha ao exterior estabelecendo-se a necessidade da aprendizagem de outras línguas, nomeadamente, o inglês, não só como forma de comunicação, mas também como forma de tantos nomes da literatura poderem ser lidos na Islândia através das poucas traduções que vão surgindo aqui e ali.
A importância dos livros, que é um tema tão desenvolvido na literatura islandesa e o denominador comum desta trilogia de Jón Kalman Stefánsson, afirma-se, mais do que nunca, neste volume, como a grande necessidade de toda uma sociedade ávida de conhecimento ao ponto de um simples livro de gramática inglesa constituir uma alegria imensa para as pessoas porque é a compreensão e interiorização das regras de funcionamento de uma língua que não só contribui para o desenvolvimento do raciocínio, mas também como elemento facilitador na comunicação entre as pessoas.
O passar dos anos tornou o rapaz, o personagem principal, mais maduro e desejoso de compreender os mistérios das letras através da poesia, mas também o seu corpo e mente passaram a desejar os prazeres da carne através da experiência sexual, cujas descrições são soberbas e bastante intensas face aos sentimentos e sensações envolvidos.
O amor nasce e cresce sendo alimentado pela carne e pelo amor aos livros, em especial a poesia que toca a alma mais sensível. O rapaz torna-se mais reflexivo. O pudor face aos seus sentimentos e desejos assim o obriga. Torna-se homem.
Outro dos aspectos de relevo neste terceiro volume da trilogia tem que ver com a emancipação feminina, em que as mulheres afirmam-se gradualmente em relação aos homens no que respeita aos direitos no contexto familiar, mundo do trabalho e até do ponto de vista sexual. Não deixa de ser interessante que foi na Islândia que a Europa teve na figura de Vigdís Finnbogadóttir (n. 1930) a primeira mulher a ser eleita democraticamente para o cargo de Chefe de Estado, cargo político que exerceu no período compreendido entre 1980 e 1996.
Mas viver na Islândia é sobreviver às condições climatéricas adversas. A neve, o gelo e o frio ao longo de quase todo o ano obrigou a população da Islândia a saber como sobreviver ao branco permanente de gerações e gerações, vivendo em pequenas comunidades isoladas e distantes umas das outras. A introdução do Cristianismo na ilha constituiu também uma das formas de amenizar a solidão face ao vazio imenso envolvente. A solidão contribuiu para a consciência de que cada ser humano tem um valor inestimável não devendo haver espaço para ódios e desavenças porque todos, os poucos que existem, são necessários à sobrevivência e desafios da Islândia. O Cristianismo contribuiu para amenizar sentimentos fazendo com que o homem se torne mais humano. O falecimento de um amigo e o transporte do corpo ao longo de quilómetros para que fosse enterrado numa pequena comunidade é encarado como a necessidade de os mortos deverem estar próximos dos vivos e não abandonados e enterrados perdidos na solidão imensa do solo gelado num qualquer ponto inóspito da ilha.
Profundamente humano, “O Coração do Homem” apresenta-nos uma Islândia que se tornou pragmática face à adversidade imposta pela natureza. Num país que pouco tem para oferecer aos próprios autóctones, há que sobreviver civilizadamente. O frio obrigou à tomada de consciência da fragilidade humana face à força e grandiosidade da natureza e que um passo ao lado pode significar pôr a vida em risco. O cenário branco também é sinónimo de pureza, o local ideal para os anjos, mesmo quando os anjos demonstram a sua tristeza.
“O Coração do Homem” encerra deste modo uma trilogia que se apresentou como uma das experiências mais notáveis da literatura nórdica dos últimos anos. A doçura das palavras de Jón Kalman Stefánsson ficarão gravadas no espírito de quem as lê, afirmando-se como uma experiência literária ímpar e viciante.
Excertos:
"O homem precisa de pouquíssimas coisas: de amar, ser feliz, comer; e, depois, morre. No entanto, falam-se mais de seis mil línguas em todo o mundo - porque existem tantas para se darem a conhecer desejos tão simples? E porque tão raras vezes conseguimos fazê-lo, porque é que a luz das palavras se desvanece assim que as escrevemos? O toque pode dizer mais do que todas as palavras do mundo, é verdade, mas o toque desaparece com o passar dos anos e, então, necessitamos, de novo, das palavras, são elas as nossas armas contra o tempo, a morte, o esquecimento, a infelicidade." (p. 87)
"Gísli dissera: dificilmente se pode descrever a importância das traduções. Enriquecem-nos e fazem-nos crescer, ajudam-nos a perceber melhor o mundo, a perceber-nos. Um país que traduz pouco e que se concentra apenas nos seus pensamentos está limitado, e se, ademais, contiver uma grande população, torna-se também perigoso para os outros, porque a maior parte das coisas que não os seus pensamentos e hábitos lhes é estranha. As traduções expandem as pessoas e, por conseguinte, o mundo. Ajudam-nos a compreender nações distantes. As pessoas odeiam menos, ou receiam menos, aquilo que compreendem. Compreender pode salvar as pessoas de si mesmas. Os generais têm mais dificuldade em converter alguém a matar quando essa pessoa tem o conhecimento do seu lado. Digo-te que o ódio e o preconceito equivalem a medo e ignorância, e podes anotar o que acabei de afirmar." (p. 156)
“Algo acerca dos perigos dos sonhos, dos perigos da poesia. No entanto… quem se lembra de quem raras vezes ou nunca se distraiu e perdeu em sonhos, não sentiu a centelha da vida e se tornou aos poucos cinzento, cinzento e pálido e destroçado, sem pouco se debater, caindo na monotonia, de quem se tornou a própria monotonia e desapareceu muito antes da sua morte? Podemos, nesse caso, almejar a centelha, ainda que esta nos possa cobrar a vida demasiado cedo? Arrisquemos e vivamos.
Se ao menos o tivéssemos feito…” (p. 176)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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