É um livro que perturba porque faz o retrato de um Portugal rural, atrasado, analfabeto, religioso, subserviente. A pobreza tem como contrapartida a caridade como forma de expiação para os pecadores. O analfabetismo e a religião são os ingredientes que moldam as consciências das pessoas no Portugal rural e atrasado de há um século. Os detentores do poder são além do administrador do concelho a Igreja, que tem como missão a subjugação e o condicionamento das pessoas pelo temor, pela culpa e pela interiorização do pecado.
E depois há as mães: a mãe de Lúcia, a mãe do autor, a mãe de Cristo, as mães que estão sempre presentes, mesmo quando não estão, as mães que cuidam, que choram, que trabalham, que não descansam, que acreditam no milagre da cura do filho, que rezam para que o filho seja poupado à guerra, as mães que desculpam as bebedeiras dos maridos, as mães que são as últimas a sentar-se à mesa e a comer porque primeiro é para o marido e os filhos…
(“Todas as pessoas têm direito a descanso, menos as mães. Para cada tarefa, profissão ou encargo há direito a uma folga, menos para as mães. Se alguma mãe demonstrar a mínima fadiga de ser mãe, haverá logo uma besta, ignorante de limpar baba e de parir, que se oferecerá para a pôr em causa. Não é mãe, não sabe ser mãe, não foi feita para ser mãe, dirá. Mas, se todas as pessoas têm direito a descanso, será que as mães não são pessoas? A culpa é nossa. Sim, a culpa é das mães. Deixámos que fossem os filhos a definir-nos.”)
E quem se lembra das mães que antes de serem mães foram meninas?
(“Duvido que sejas capaz de me imaginar com dez anos. Já fui nova, sabias? Quando nasceste, em setembro, eu tinha trinta e dois anos feitos em junho. Talvez consigas suspeitar o que foi para mim ter-te com trinta e dois anos, até acredito nisso. Lembro-me de estares na minha barriga, nos últimos meses era um barrigão, mas tu não és capaz de me imaginar com dez anos, duvido. Não sou essa menina que imaginas quando tentas imaginar-me com dez anos. Fui uma menina que nunca conhecerás.”)
A mãe de Lúcia é forte, austera, receia que as revelações de Lúcia tragam castigos divinos porque para ela são mentiras, não passam de imaginação da filha. O prior acompanha a mãe de Lúcia na descrença das palavras da pequena pastora, mas logo uma outra Maria (da Capelinha), impelida na crença da salvação do filho e focada no desígnio da construção de uma capelinha junto ao local da aparição, movimenta a aldeia e pressiona Lúcia a garantir da veracidade das aparições. Neste jogo do esconde e do empurra, a pobre Lúcia sente-se perdida, confusa, chora, ausenta-se, quer que a deixem em paz, entristece-se, sente-se um joguete. É um joguete. E por que não “construir uma estância rentável, comparável à que existe em Lourdes?”
José Luís Peixoto usa de grande sensibilidade no tratamento desta ocorrência que passou à categoria de milagre e que tem sido analisada de vários ângulos, embora seja corrente e se tenha estabelecido como local de peregrinação e de culto por parte de pessoas crentes provenientes de todo o mundo. O autor não impõe a sua visão, antes nos dá a liberdade de pensar e fazer um juízo sobre como e por que surgiu Fátima e o culto a ela associado.
Dezembro de 2016
Almerinda Bento
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