Uma das agradáveis surpresas do panorama editorial neste final de ano passa seguramente pela publicação do romance "O Cavaleiro Sueco" (1936) do escritor austríaco de origem judaica Leo Perutz (1884-1957).
Herdeiro de toda uma tradição literária da Europa Central, Leo Perutz apresenta-nos uma obra com o século XVIII como pano de fundo cujos personagens deambulam entre a ficção e a realidade graças a doses de fantasia distribuídas ao longo da narrativa.
É de certa forma a introdução da fantasia ao longo da obra que permite ao leitor a ideia de um certo sentido de justiça que é necessário impor numa época em que as guerras na Europa são uma constante, não esquecendo a clivagem existente entre o conhecimento científico que dificilmente impera em detrimento da superstição reinante entre os vários estratos da sociedade de então.
A Europa do Antigo Regime que parece ter estagnado em termos sociais ao longo de vários séculos, continua a ter como ponto assente a clivagem entre os privilegiados, uma minoria, e os subordinados, a maioria, que continua a viver em péssimas condições de vida dependendo dos primeiros para a sua sobrevivência.
É neste ambiente de guerras pela terra/território que ainda se combate na Europa do século XVIII, numa época anterior à revolução agrícola e industrial, por um lado, e às revoluções liberais, por outro, que se desenrola a obra "O Cavaleiro Sueco". A terra continuava a ser considerada a principal fonte de riqueza neste período, daí que o alargamento do território impunha-se aos governantes que com a colaboração de toda uma rede de nobres guerreiros com relações de vassalagem entre si, guerreavam entre impérios diferentes. Terra e glória serviam assim de mote para que as nações embarcassem nestes conflitos militares, por vezes duradouros, que em caso de morte viria a glória de Deus dado que havia a ideia generalizada de que os militares morreriam ao serviço de Deus, aludindo ainda para uma época em que Estado e Igreja se mantinham ligados.
Numa Europa cujas fronteiras em nada se assemelhavam com as da atualidade, pequenas regiões funcionavam como reinos em si mesmos que ora viam o seu território a alargar ou a diminuir fundindo-se tantas vezes noutros reinos. É nesta guerra que opõe o venturoso e jovem rei sueco Carlos XII ao czar russo através de uma contenda que se arrasta pela Europa Central durante vários anos que se desenrola toda a narrativa de "O Cavaleiro Sueco".
No decurso desta guerra há dois fugitivos que procuram refúgio num antigo moinho tratando-se, pois, dos personagens principais da obra, um nobre, desertor do exército sueco, e um ladrão perseguido pelas autoridades da região. Os dois indivíduos fazem um pacto com o fantasma do antigo moinho trocando de identidade entre si com vista a poderem salvar-se da situação até que o destino os volte novamente a unir. Assim, o ladrão assume-se como Cavaleiro Sueco ao passo que este perderá a sua identidade passando a realizar trabalhos forçados nas forjas do Bispo.
É esta troca de identidade entre os personagens que enriquece toda a obra, transformando-se mesmo na questão essencial ao ponto de o leitor se questionar a dada altura da narrativa se se verificou uma troca efectiva de identidade entre os personagens ou se tal pensamento não terá sido fruto da nossa imaginação.
Este jogo de "é-não-é" impõe-se gradualmente e na tentativa de tirar aos ricos para benefício próprio vai provocar algum confronto nos valores instituídos no que respeita à mentalidade cristã vigente. Uma vez que a Deus tudo pertence, não importa as mãos por que passam esses bens. "O ouro e a prata existentes nas casas dos padrecos é de Deus e de Deus continuam a ser mesmo que estejam nos nossos sacos." (p. 95)
Numa Europa em convulsão pelo gradual e inevitável desmoronamento do Antigo Regime, alguns dos padrões da Igreja são postos em causa da mesma forma que toda a sociedade se encontra à beira da rutura.
A tentativa de impor uma certa ideia de justiça social é outro dos temas de fundo desta obra ainda que de forma anárquica, numa perspetiva de dividir para reinar.
Mas este jogo de "é-não-é" ao ponto de cada um assumir no outro a sua identidade tratando-se de uma espécie de peça de teatro, vai acabar por colidir com os desígnios do destino na medida em que passado e presente acabarão por esbarrar entre si trazendo consequências inesperadas.
Este "é-não-é" vai acabar por surpreender o leitor na medida em que este concluirá que nunca poderia ter sido de outra forma, dado que o destino acabará por cumprir-se, inevitavelmente, mesmo perante um cenário trágico.
As questões que ficam por esclarecer, não propriamente para o leitor, são tidas por uma das personagens como "um segredo lúgrube, triste e imperscrutável" (p. 11) conforme consta no relatório preliminar (uma espécie de prefácio) de "O Cavaleiro Sueco".
É neste misto de realidade e ficção que Leo Perutz introduz de forma exímia o elemento relativo ao fantástico que nos arrebata os sentidos criando uma história do tipo aventura com algumas nuances de Robin dos Bosques, com muito humor, ironia e sentido de justiça, não esquecendo a ideia do saber esperar herdada da tradição judaica da qual o escritor é conhecedor.
As peças do puzzle encaixam-se por fim e o leitor fica completamente rendido a este livro que nos faz sonhar e ao mesmo tempo questionar as fronteiras da realidade e da ficção, além de que nos sentimos um pouco aventureiros como o espírito dos adolescentes face a esta ideia do jogo de papéis entre o "é-não-é" e o que "não poderia ter sido de outra forma" para que se cumprisse o destino, de certa forma um destino que deixou marcas para a posteridade. E na literatura também.
Excertos:
"No banco do forno estava sentado um homem que tinha uma cara que parecia cabedal espanhol, pálida, amarelada enrugada e cheia de pregas, e os olhos achavam-se cravados na sua cabeça como duas cascas de noz ocas. Trazia um gibão de fazenda vermelha e um largo chapéu de cocheiro e, em cima do chapéu, uma pena, e os canos das suas pesadas botas de montar chegavam-lhe até aos joelhos. E como estava ali sentado em silêncio com os seus dentes descobertos e as suas trombas tortas, o medo apoderou-se de ambos, e o ladrão percebeu que aquele era o moleiro morto que tinha vindo do Purgatório para ver como estavam as coisas no seu moinho. E, por detrás das costas de Tornefeld, benzeu-se discretamente, invocando ao mesmo tempo o sofrimento e as chagas e a água e o sangue de Jesus, pensando que deste modo o espectro desapareceria imediatamente no meio de muitos vapores de enxofre e fedor e voltaria para o Purgatório. Mas o homem do gibão vermelho conservava-se ali e não se mexia, estava ali sentado e fitava os outros dois com o olhar, como uma coruja que se prepara para desferir uma bicada.
- Como é que o senhor entrou aqui? – perguntou Tornefeld com os dentes a bater. – Não o vi chegar.
- Uma velhinha trouxe-me numa jarra – disse o homem com um riso surdo, e com uma voz tão abafada como quando se atira pazadas de terra para cima da terra. – E vós? O que procurais aqui? Comeis o meu pão e bebeis a minha cerveja, e parece que eu devo dizer: Que Deus vos abençoe!" (pp. 26-27)
"- Que horas da noite é que já são?
- Para ti, o tempo esgotou-se e a eternidade começa – respondeu a Árvore de Fogo em vez do cirurgião militar. – Dirige os teus olhos para Deus, capitão. Em terra não há clemência para ti, muito em breve a morte ter-te-á nas suas garras, mas Deus é misericordioso. Por isso, confessa-te e reconhece os teus pecados!
- A comer carne e ovos durante a Quaresma, foi assim que comecei a pecar, era eu ainda rapaz – lamentou-se o Íbis negro em voz baixa.
Mas não era isso que os dois homens, o cirurgião e o Árvore de Fogo, desejavam ouvir.
- Também furtaste, roubaste, exerceste misteres desonestos, acumulaste muitos despojos – recriminou-o o Árvore de Fogo e bateu com o punho no peito como se estivesse na igreja a pronunciar o ‘sanctus’. – Que Deus tenha o que é de Deus, capitão, pensa na tua bem-aventurança!
- Roubei, furtei – prosseguiu o Íbis negro com a sua confissão. – Vivi do suor e sangue dos pobres.
- E agora, confessa-nos onde escondeste o dinheiro dos pobres! – exclamou o Árvore de Fogo. – Confessa-o antes que se faça tarde, e arrepende-te e lamenta os teus pecados, senão estás perdido de corpo e alma e pertences ao diabo para toda a eternidade!
- Não, meu sacripanta, não te vou dar esse prazer – ofegou o Íbis negro. – Prefiro que o diabo me leve daqui a dizer-te a ti, meu patife…
Tinha-se erguido no seu leito e interrompera o seu discurso, tinha reparado no ladrão que se perfilava junto da porta. E no seu delírio tomou-o pelo diabo que o vinha buscar.
- Está aqui! Está aqui! – gritou. – Porque não protegeram melhor a porta e as janelas? O Gaspar negro está aqui e quer agarrar-me." (pp. 84-85)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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