A novíssima Fumo Editora apresenta-se no mercado editorial português com o romance autobiográfico "Acabar com Eddy Bellegueule" do francês Édouard Louis (n. 1992).
Escrito com apenas 19 anos, Édouard Louis traz a escrito o relato sentido da sua vida desde criança até ao momento em que, já adolescente, ingressa numa escola para estudar teatro numa cidade francesa.
Filho de pai operário e de mãe que cuida de idosos, Édouard Louis cresceu numa aldeia do Norte da França marcada pela pobreza do ponto de vista económico, social e cultural, quase abandonada ou mesmo desenraizada face ao resto do país.
A pobreza que se perpetua de geração em geração condiciona os mais jovens a perspetivarem o seu futuro na medida em que as próprias famílias têm uma baixa escolaridade vendo-se na eminência de ter começar a trabalhar ainda em tenra idade ou para ajudar a família ou na sequência de uma gravidez indesejada durante a adolescência.
Sem grandes perspetivas de futuro, os habitantes da aldeia com menos de mil habitantes perpetuam o quotidiano das suas atividades como o único possível dado tratar-se da única realidade que conhecem num raio de muitos quilómetros, daí que a televisão e a taberna (aqui, o álcool representa um sério problema tanto entre jovens como nos adultos) constituam as principais distrações.
A escola em termos gerais cumpre função genericamente para aprender a ler e a escrever e pouco mais e nunca como uma forma de perspetivar e orientar o futuro com outras possibilidades. A fábrica com o seu trabalho duro é a alternativa ao trabalho no campo ou à pesca, profissões que marcam gerações a fio, tornando-se rudes e tendencialmente violentas no pensar, falar e agir num quadro sociológico fechado como se tratasse de uma"comunidade-bolha" à espera de rebentar a qualquer momento.
Estas pequenas comunidades fechadas sobre si mesmas desenvolvem um quadro de valores que lhe é totalmente inerente, reflexo do duro viver, de uma pobreza (muitas vezes de espírito) que se respira a todos os níveis e tantas vezes se confunde com miséria. Esta cultura própria da aldeia é igualmente comandada pela forma de estar eminentemente masculina, sendo, pois, os homens que determinam as regras sociais, refletindo-se até no próprio modo de estar e de sentir das mulheres que, se por um lado vivem submissas em relação aos homens, por outro lado, ao exercerem o papel de mães, transmitem aos filhos esse mesmo quadro de valores assente na importância de ser homem e no papel que desempenha. Até a linguagem rude dos homens é copiado pelas mulheres como forma de transmissão dessas referências culturais! Exemplo disso são as seguintes passagens: "(…) Até a minha mãe dizia de si própria ‘Eu cá tenho colhões, ninguém faz de mim o que quer’" (p. 30) e "‘Oh caralho nesse dia ficaste caladinho, o teu pai fodeu-te com uma sova das boas" (p. 191) aquando da primeira tentativa de fuga por parte de Eddy já em adolescente.
É neste ambiente que Édouard Louis cresceu acrescentando o facto de ser homossexual, o que por si só, numa comunidade com estas características é sobejamente sufocante. Édouard Louis é desde tenra idade visto como uma criança diferente das demais do seu meio sofrendo com as agressões físicas e verbais de modo continuado por parte dos seus pares, na escola. O ter sido alvo de bullying durante parte da infância e adolescência gera em Édouard Louis uma tristeza e angústia sem precedentes ao ponto de escrever essa mesma ideia nas primeiras linhas da obra: "Da minha infância, não tenho nenhuma recordação feliz. Não quero dizer que, durante esses anos, não experimentei nenhum sentimento de felicidade ou de alegria. Simplesmente, o sofrimento é totalitário (…)". (p. 13)
O auto-reconhecimento da sua identidade sexual ou simplesmente orientação sexual, assim como todas as tentativas de negação da mesma por parte de Édouard Louis constitui de facto um papel central em "Acabar com Eddy Bellegueule", porém, desengane-se o leitor se julga que vai encontrar páginas inteiras com descrições (explícitas) alusivas às experiências de natureza sexual do jovem, uma vez que o livro, apesar de também aludir a um único episódio em particular, trata-se de uma situação determinante não só na vida do jovem como também no decurso da narrativa.
Édouard Louis surpreende-nos com a forma como nos apresenta a narrativa na medida em que o próprio livro é em si mesmo um livro de tomada de consciência de que a partir do momento em que consegue ingressar num curso de teatro numa cidade, é levado a desconstruir os preconceitos com os quais viveu toda a vida, na medida em que foi confrontado com situações em concreto para as quais não estava preparado ou por e simplesmente tinha uma ideia errada das coisas, das pessoas, no fundo, da realidade em termos gerais.
"Acabar com Eddy Bellegueule" é, pois um livro escrito não só tendo como base a tristeza e a angústia do autor conforme descritas acima, mas também com a força, a garra de um jovem que se traduz na vontade de expelir todo o sofrimento acumulado face a todos aqueles que de alguma forma o esmagaram. Não se trata de um livro em que o autor se tenta de alguma forma vingar destilando, desse modo, ódio e raiva face àqueles que o magoavam física e/ou psicologicamente. Até nesse sentido, trata-se de um livro que nos apresenta um jovem capaz de suportar essas aflições acabando por reconhecer, mais tarde, na cidade, que mesmo no caso concreto da sua família, se trata de pessoas que com uma baixa escolaridade e com poucos meios de sobrevivência, dificilmente conseguirão olhar quem supostamente sai daquilo que possa ser considerado como "a norma", como um alvo a abater, custe o que custar, e de modo deliberado, fazendo então todo o sentido o título do livro, "Acabar com Eddy Bellegueule".
Excertos:
"Efetuava cada um dos gestos matinais (arranjar-me, preparar um chocolate quente – com água quando faltava o leite -, escovar os dentes – nem sempre -, lavar-me, não tomar duche, a minha mãe advertia-me. Repetia-me ‘Não nos podemos lavar todos os dias, tomar duche, não temos água suficiente. Só temos uma pequena caldeira de água quente e uma família de sete pessoas, é muito, demasiado para uma caldeira tão pequenina e baratucha. E não tentes abrir o bico, seu desbocado, para dizer qualquer coisa, para me responder. Não se responde à mãe, faz-se o que ela diz. Ponto final. Não me respondas que basta ligar a caldeira depois do teu banho, já te estou a ver abrir a boca para dizeres isso e armares-te em esperto. Já te conheço. Sabes bem quanto custa a água, a electricidade, não temos maneira de a pagar’ – e esta graça que a minha mãe nunca consegue deixar de fazer: ‘tenho contas para pagar, não tenho nenhum amante na companhia de electricidade’. Nos dias de banho, a minha mãe exigia que não esvaziássemos a água da banheira depois de termos saído, para que as cinco crianças da família pudessem tomar banho uma a seguir à outra sem consumir mais água e electricidade. O último – eu fazia tudo o que estava ao meu alcance para evitar sê-lo – herdava então uma água castanha e imunda)." (pp. 62-63)
"Não me escarrou na cara. Naquela manhã escarrou na manga do meu blusão, um escarro esverdeado, rígido de tão espesso. O pequeno de costas arqueadas fez a mesma coisa, na mesma manga (um fino blusão de jogging azul com riscas que usava no Inverno; tinha perdido o meu casaco e os meus pais não tinham podido comprar-me outro ‘Desenrasca-te, tens de deixar de perder as tuas coisas’). Riam. Eu olhava para os escarros colados ao blusão, pensando que assim me tinham poupado um escarro na cara. E depois o matulão de cabelos ruivos disse-me ‘Engole os escarros paneleiro’. Eu sorri, mais uma vez, como sempre. Não que pensasse que estavam a gozar, mas esperava, ao sorrir, inverter a situação e torna-la numa brincadeira. Ele repetiu ‘Engole os escarros paneleiro’, despacha-te. Recusei – habitualmente não o fazia, quase nunca o tinha feito, mas não queria engolir os escarros, iria vomitar. Disse que não queria. Uma agarrou-me pelo braço, o outro pela cabeça. Colaram a minha cara nos escarros, exigiram ‘Lambe, paneleiro, lambe’. Deitei lentamente a língua de fora e lambi os escarros cujo cheiro colonizava a minha boca. Em cada lambidela encorajavam-me com uma voz doce, paternal (as mãos a segurarem com força a minha cabeça) ‘Muito bem, continua, força’. Continuei a lamber o blusão enquanto eles me davam ordens, até os escarros desaparecerem. Foram-se embora." (pp. 149-150)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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