“O Armazém e Outras Estórias”, Ebook colectânea de contos ilustrados, que lancei recentemente, começou sem começar. Eu explico. Quando comecei a escrever, aos 15 anos, iniciei-me pelas narrativas de curta metragem. Pequenas peças de teatro, poemas e contos. Os pequenos formatos sempre me fascinaram pela brevidade mas também pela intensidade que conseguem transmitir num tempo tão condensado. Recordo-
me, por exemplo, de ler os contos de Tchekhov e ficar fascinada pelos pormenores que cada pequena história continha, os cheiros, as cores, os pensamentos dos protagonistas, as impressões e tudo num momento tão fugaz. Essa inspiração materializou-se, bem mais tarde, no conto “O que dizem os búzios”. Depois de Anton Tchekhov, apaixonei-me pelos surrealistas, sobretudo por Boris Vian, ponteados de humor negro e sequências aleatórias e absurdas. Foi por essa altura que comecei esta colectânea (mesmo sem saber que a estava a originar). O primeiro conto, que dá nome à Colecção, “O Armazém”, escrevi-o com 18 anos. Nem mais nem menos. Descansem, no entanto, os mais puristas. O conto foi editado e reeditado vezes sem conta, à medida que fui aprimorando a minha escrita. Este conto abre “a matar”, como alguns leitores definiram. Não foi propositado, foi despropositado. Na verdade, este conto tem que ver com uma energia pura e uma imaginação à solta de uma apaixonada por ficção, humor negro e puro non sense, uma combinação que ainda hoje me fascina. Não entrarei em pormenores sobre a história, pois neste conto, como em quase todos os outros, trabalhei o factor surpresa e não há nada pior do que alguém nos estragar aquilo que queremos saber por nós próprios. O que vos posso dizer é que é despropositado, sim, e que vos vai levar a um Armazém que não existe na vida real. Bom, pelo menos que eu saiba. Se algum de vós, souber de sítios reais assim, por favor contacte-me. Sugiro que entrem neste Armazém com uma atitude aberta, de observador, pois foi exactamente essa a atitude que imprimi na personagem principal. Mas voltando ao início, o tal que não era um começo propriamente dito. Logo a seguir, escrevi “Os cabelos ruivos”, também reeditado, naturalmente - ou remasterizado, como costumo parodiar. Esta história também cruza a realidade com a ficção, mas de uma forma menos assumida, pelas mãos de uma personagem que é uma espécie de cowboy solitário, que conduz um Mercedes preto antigo pelas estradas fora até que, um dia, uma dessas viagens sem rumo lhe faz mudar a rota. Provavelmente estão a pensar que todos os outros contos, mais 16, viriam numa lógica cronológica mas não, tal não aconteceu. Digamos que “armazenei” estes e outros contos que fui escrevendo e que não estão nesta colectânea. A seguir dediquei-me a formatos mais longos, desde argumentos até romances, alguns de vós provavelmente terão lido “2001, Instantâneos de Sapo” e “Lau Mim”. Talvez. Ou talvez não. O que é essencial para a nossa história de hoje é que estes contos ficaram “armazenados” até voltar a apaixonar-me novamente pelo género, paixão assolapada que devo muito aos escritores norte-americanos Raymond Carver e Flannery O'Connor. O frenesim de voltar aos contos
começou a formar-se ao ponto de se tornar uma obsessão. Precisava de os escrever. Dediquei algumas das noites e dias mais divertidos da minha vida a escrever o que vão ler nesta colectânea. A meio do processo, pensei que seria interessante ilustrá-los. A impressão causada pelo livro de Tim Burton “A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Histórias” perdurava na minha mente fotográfica. Convidei um ilustrador cujo trabalho admiro muito, o João Raposo, e ele alinhou. Em relação aos outros dois contos de que vos falei anteriormente, escritos nos meus primeiros anos de vida adulta, há um salto. Um grande salto, diria mesmo. Não falo obviamente em termos de qualidade, deixo aos críticos tal julgamento, mas de um mergulho na realidade. Interessaram-me as pessoas reais, as pessoas anónimas (hão-de reparar que muitas das personagens apenas são tratadas pelas iniciais), pessoas com as quais viajamos no metro, que são nossas vizinhas e que poderiam ser intituladas “pessoas normais”. Mas afinal o que são “pessoas normais”? Foi o que tentei responder nos restantes 16 contos que vão encontrar nesta colectânea. Serão assim tão normais? Em alguns, inspirados em casos reais, e provavelmente aqueles que vos parecerão mais absurdos, quis explorar situações familiares, ordinárias, mas que, por algum motivo, se tornam inusitadas e nos obrigam a olhar para os assuntos sob uma perspectiva diferente. O que pensamos quando viajamos com pessoas a invadir os nossos espaços vitais? O que sentimos quando uma vizinha do lado é descoberta na sua casa falecida há dois anos e era “tão boa pessoa” e tinha uma família numerosa que a amava mas ninguém se deu ao cuidado sequer de saber dela? O que é que acontece quando um vidente nos diz realmente a verdade, aquela que passamos a vida a tentar evitar? O que nos motiva a amar, a juntarmo-nos e a separarmo-nos de alguém? O que fazemos quando não nos sentimos próximos de ninguém, mesmo os nossos mais queridos? O que nos faz ser íntimos com alguém? O sexo, a química, o amor, a curiosidade, a empatia, ou somente o cansaço de se estar só? O que é mais perturbador, o medo ou a sugestão do medo? O que nos acontece quando a pessoa que mais amamos nos deixa? Conseguiremos voltar a ser o que éramos? Estas questões existenciais persistem ao longo da colectânea, mesclando o real e a ficção, até ao apogeu de um concurso de televisão que tem tudo menos de “realidade”. Mas não vos quero estragar a surpresa. Leiam. Exercitem a vossa faceta de voyeurs. Nous sommes embarqués...
Patrícia Madeira
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