A Força da Idade, Simone de Beauvoir, 1960
“A Força da
Idade” é dos livros que herdei da minha irmã, talvez o mais
importante. Ela tinha-me oferecido “Os Mandarins”, pediu-me que
lho emprestasse para o ler e quase chegou ao fim do 2º volume
naquelas férias fatídicas. Chegou a minha vez de ler este belíssimo
exemplar de “A Força da Idade” editado pela Bertrand e descobri,
ao longo da leitura, sublinhados que inevitavelmente me fazem reviver
as suas preocupações, os seus interesses e os seus medos. Foi pois
um livro cuja leitura me remeteu invariavelmente para ela e para as
nossas vivências. Por isso, as palavras que vou escrever sobre este
livro que Simone de Beauvoir dedicou a Jean Paul Sartre, dedico-as à
memória da minha irmã Isabel.
Tinha lido “Memórias
de uma Menina Bem Comportada” há muitos anos e lembro-me que foi
durante muito tempo um livro muito vivo na minha memória, mas
passados tantos anos, algumas das referências que Simone de Beauvoir
faz no início do livro, naturalmente, pessoas importantes e
marcantes na sua juventude, mas que entretanto deixei de identificar.
“A Força da Idade”, para além de um livro autobiográfico em
que a autora detalha momentos marcantes da sua juventude, como viveu
pela primeira vez e de forma intensa a sensação de liberdade, é
também um documento histórico valioso sobre o período que antecede
a 2ª guerra mundial até ao momento da Libertação de Paris em
Agosto de 1944.
No Prólogo, Simone
de Beauvoir avisa: “Lancei-me numa aventura imprudente, quando
comecei a falar de mim. Começa-se e nunca mais se acaba. “ (…)
“No entanto, devo preveni-los que não pretendo dizer tudo” (…)
“a minha vida foi estreitamente ligada à de Jean Paul Sartre; mas
a sua história espera contá-la ele próprio e deixo-lhe essa
tarefa.” E, em nota de rodapé: “Neste livro consenti em
omitir; nunca em mentir. Mas é provável que a memória me tenha
traído em pequenas coisas…”
O livro está
dividido em duas grandes partes; a primeira vai de Setembro de 1929
ao Verão de 1938 e a segunda, desde esse Verão quando a ameaça da
guerra era já muito presente até 25 de Agosto de 1944, quando os
últimos ocupantes nazis abandonaram a cidade de Paris onde Simone de
Beauvoir vivia.
Simone de Beauvoir
tem 21 anos, vai viver para Paris onde dá umas aulas que lhe
permitem a liberdade de ter um quarto seu. “Quando Sartre voltou
a Paris, em meados de Outubro, começou verdadeiramente a minha nova
vida” (pág.15). O dinheiro era pouco, liam, iam ao teatro,
descobriam o cinema sonoro, discutiam as teorias de Sartre, tinham
uma visão idílica sobre a paz, considerando a ascensão das ideias
de Hitler “um epifenómeno sem gravidade” (pág.16). O seu
ideal de vida era escrever e para este jovem casal “a liberdade
era a nossa única regra” (pág.40). Viviam longe da realidade,
no entanto, Beauvoir refere numa visita a uma pequena fábrica de
tomadas para lâmpadas eléctricas que, ao ver a dureza,
insalubridade das condições de trabalho e monotonia das tarefas,
que o seu “primeiro encontro com o trabalho foi como um soco no
estômago” (pág.53).
As caminhadas
solitárias e a descoberta sistemática da região de Marselha, onde
é colocada durante um ano, são um deslumbramento para Simone de
Beauvoir. Segue-se Rouen, sem os encantos de Marselha, onde vai
permanecer durante quatro anos, mas com a vantagem de estar mais
próxima de Paris e de Sartre que dá aulas no Havre. Em Espanha,
vencem as forças republicanas, mas na Alemanha as ideias de Hitler
vão fazendo o seu caminho e na Itália os camisas negras estão cada
vez mais presentes nas ruas. No entanto, apesar das perseguições
aos judeus na Alemanha, os intelectuais nos quais Beauvoir e Sartre
se incluíam encaravam isso com relativa serenidade e tinham uma
visão distorcida sobre a situação política. Em finais de 1934,
início de 1935 a situação económica deteriora-se, crescem os
despedimentos e o desemprego. A xenofobia e as tendências
nacionalistas de direita aprofundam-se. É interessante perceber a
evolução no pensamento de Simone de Beauvoir que nessa altura só
tinha interesse, ao nível da política externa, por o que se passava
em Espanha em que as direitas estavam no poder, com a repressão
selvática aos operários da Catalunha e das Astúrias. “Uma
questão que nessa altura fazia correr muita tinta era o voto das
mulheres; no momento das eleições municipais; Marie Vérone e
Louise Weiss agitaram-se furiosamente; tinham razão; mas como eu era
apolítica e não iria usar dos meus direitos, era-me absolutamente
indiferente que nos reconhecessem ou não” (pág.183). O que a
movia eram as questões da repressão que se fazia sentir,
questiona-se sobre a pena de morte, mas do ponto de vista político a
sua postura assim como a de Sartre era de meros espectadores
(pág.186). A Frente Popular que introduzira grandes transformações
sociais e melhoria na qualidade de vida dos operários franceses
entra em declínio; os franquistas avançam em Espanha e Guernica é
massacrada; a Grécia vive em ditadura e a pobreza do povo é
indisfarçável. Só a URSS se mostrava desejosa de barrar o
fascismo, mas “Nunca imagináramos a URSS como um paraíso, mas
também nunca tínhamos posto seriamente em questão a construção
socialista (…) Não haveria mais nenhum lugar no mundo onde se
pudesse alojar a esperança?” (pág.245). As perseguições
intensificam-se na Alemanha e a Europa vive uma onda de refugiados
que se deslocam e que ninguém quer aceitar.
A Primavera de 1939
marca um ponto de viragem em Beauvoir, que faz um balanço dos seus
últimos dez anos numa síntese que encerra a 1ª parte desta
autobiografia. “Não é possível assinalar um dia, uma semana,
nem mesmo um mês, para a conversão que então se deu em mim. Mas é
certo que a Primavera de 1939 marca um corte na minha vida. Renunciei
ao individualismo e ao anti-humanismo. Aprendi a solidariedade” (…)
“É arbitrário cortar a vida aos bocados. No entanto, o ano de
1929, de que datam, ao mesmo tempo, o fim dos meus estudos, a minha
emancipação económica, a saída da casa paterna, a ruptura das
antigas amizades e o meu encontro com Sartre, abriu evidentemente
para mim uma nova era. Em 1939, a minha existência mudou de uma
maneira igualmente radical: a História apanhou-me para não mais me
largar; por outro lado, dediquei-me a fundo para sempre à
literatura. Encerrava-se uma época. Este período que acabo de
contar fez-me passar da juventude à maturidade. Dominaram-me duas
preocupações: viver e realizar a minha vocação ainda abstracta de
escritor; isto é, encontrar o ponto de inserção da literatura na
minha vida.” (pág. 302). “Todavia, ao fazer o balanço
destes anos, parece-me que me deram muitíssimo: tantos livros,
quadros e cidades, tantos rostos, tantas ideias, emoções e
sentimentos! Nem tudo era falso.” (pág. 306)
No Verão de 1938,
já com a ameaça iminente da guerra, ainda aproveita a natureza na
Provença com Sartre, antes de regressar a Paris. A notícia da
conclusão do pacto germano-soviético é o fim de toda e qualquer
esperança. Os comboios sobrelotados, a mobilização e a angústia
das pessoas são o sinal da viragem. No entanto, há ainda a crença
de que a guerra não vai ser longa e que os fascismos vão ser
liquidados e que a França e toda a Europa caminharão para o
socialismo. É muito interessante o retrato que Beauvoir traça do
estado de espírito das pessoas: inquietas, dando palpites, tentando
adivinhar o futuro. Ela própria “sentia medo. Não receava por
mim; nem por um instante pensei em fugir do País. Tinha receio por
Sartre.” (…) ”E uma manhã a coisa aconteceu. Então, na minha
solidão e angústia, comecei a escrever um diário. Parece-me mais
vivo, mais exacto do que a narrativa que eu pudesse tirar dele.”
(pág. 321) Vai então escrever um diário que começa a 1 de
Setembro e vai até 14 de Julho do ano seguinte, com alguns períodos
intermitentes, ou seja, todo o período em que está afastada de
Sartre. Este diário é um retrato/documento vivo do quotidiano da
França naquela época. A 1 de Setembro é declarada guerra à
Polónia, Sartre é mobilizado para Nancy, as pessoas começam a
comprar máscaras de gás, as rotinas alteram-se, os cafés fecham
cedo e as boîtes não abrem. “O Flore está fechado.
Sento-me na esplanada do Deux Magots e leio Journal, de Gide, de
1914; grande analogia com o momento presente” (pág. 326)
Alguns dizem que esta guerra é uma brincadeira. “Durará muito
tempo?”, pergunta Simone de Beauvoir. Num passeio pelos campos
com Camille, “Voltamos através dos campos e aldeias. É um
momento muito comovente e recordo-me do que Sartre me disse em
Avinhão, e que é tão verdadeiro: que se pode viver numa grande
doçura um presente rodeado de ameaças; não esqueço nada da
guerra, da separação, da morte, do futuro bloqueado e no entanto
nada pode apagar a ternura e a luminosidade da paisagem; como se
fosse invadida por um sentimento que se basta a si próprio, que não
pertence a nenhuma história, arrancado à sua própria história, de
repente, completamente desinteressado.” (pág. 334). Na entrada
de 25 de Outubro do diário, escreve Simone de Beauvoir: “Fernand
diz que os jornais estão cheios de mentiras e que a guerra vai ser
longa. Já não reajo a estas previsões. Trabalho no meu romance,
dou aulas e vivo numa espécie de embrutecimento: nenhum futuro tem
realidade.” (pág. 348)
Para se deslocarem,
os franceses precisam de salvo-condutos, o que não é fácil de
conseguir. As cartas que recebe de Sartre, em parte incerta, são
abertas pela censura. Mais tarde, em código, ela consegue perceber
que ele está na Alsácia. No PCF há demissões por desacordo com o
pacto germano-soviético. Em Maio os alemães invadem a Holanda, a
Bélgica e o Luxemburgo e a 4 de Junho a região de Paris é
bombardeada. A vida muda radicalmente para Simone de Beauvoir que tem
de ficar na cidade por causa da sua profissão. Sente-se
enclausurada. Mas, com o avanço das tropas ocupantes, os professores
são dispensados e os exames adiados. Paris é o caos, sem gasolina,
sem comida para os franceses, mas os alemães pavoneiam-se e culpam
os ingleses e os judeus pela situação de penúria que vivem os
habitantes da cidade. É nessa altura que Simone de Beauvoir aprende
a andar de bicicleta, o que lhe vai ser muito útil e para Sartre nas
suas muitas deslocações. A repressão e o peso da ideologia nazi
entram no quotidiano das pessoas. As notícias são escassas e
deturpadas, alguns amigos começam a vacilar. Outros desaparecem.
Quando Sartre que
estivera preso é libertado, quer seguir a política e cria um
pequeno grupo – “Socialismo e Liberdade “ – à semelhança de
muitos que existiam, que ajude à resistência aos ocupantes e
colaboracionistas. O “trio” que Simone, Sartre e Olga
constituíram antes da guerra, é agora alargado, como se fossem uma
“família”. Partilham o pouco que têm, apoiam-se nas
dificuldades que são cada vez maiores, a informação é escassa, os
avanços das forças inglesas andam a par das execuções, das
prisões e dos envios das pessoas para os campos de concentração,
embora nessa altura ainda pouco se soubesse sobre os campos de
concentração, as resistências organizam-se, mas há que estar
atento aos delatores. Em contraponto ao ambiente hostil da ocupação
e da guerra, à rudeza do frio e da fome, este grupo de intelectuais
– Camus, Dullin, Picasso, Dora Marr, os Leiris, Éluard, Malraux …
– fazia do Flore a sua casa e alimentava a sua amizade com a
alegria de viver o momento e de aproveitar ao máximo o facto de
estarem vivos. Tinham grandes projectos para o futuro e antecipavam o
que fariam no pós-guerra. Sartre cria textos para peças de teatro,
Simone trabalha no segundo romance e o seu reconhecimento como
escritora surge quando finalmente “A Convidada”, o seu primeiro
romance é editado e sobre ele são escritas críticas em jornais de
referência. Simone de Beauvoir era finalmente reconhecida como
escritora, ganha notoriedade e esse reconhecimento dá-lhe grande
satisfação pessoal.
Como referi
anteriormente, a parte final de “A Força da Idade” é o retrato
dos dias que antecederam a vitória sobre o ocupante nazi e que foi
sentida antecipadamente pela “família” que há tanto tempo a
desejava. A Libertação não foi conseguida sem muito sofrimento e
sem que o terror estivesse presente até ao fim. Simone de Beauvoir
faz também aqui um balanço, uma reflexão sobre a guerra e o peso
que ela irá transportar para a sua vida do pós-guerra e que não
mais se apagará. Dos muitos amigos e amigas que vão surgindo ao
longo das mais de quinhentas páginas, ela destaca o jovem Bourla
cuja morte lhe é insuportável
Para além da
minúcia e detalhe usados ao longo de todo o livro na descrição das
paisagens e percursos que fazem ela e Sartre em toda a França, mas
também noutros países como a Espanha, a Itália ou a Grécia;
Simone de Beauvoir como observadora de tudo o que a rodeia é
exaustiva na caracterização daqueles que lhe estão mais próximos
e, de forma muito particular, partilha nas suas memórias a
importância da literatura na sua vida “a literatura
tornou-se-me tão necessária como o ar que respirava” (pág.
509); as dúvidas e inseguranças em todo o processo criativo, os
elementos usados na construção de “L’Invitée”, mas também
de “Le Sang des Autres” e “Tous les Hommes sont Mortels”, o
que acho de grande interesse para quem estudar estas três primeiras
obras da autora, na medida em que estão intrinsecamente ligadas à
sua vivência e às pessoas que fizeram parte dos seus
relacionamentos mais íntimos.
Por fim e assumindo
que muitíssimo mais poderia dizer sobre este livro, não posso
deixar de aqui transcrever um parágrafo que surge na parte final do
livro, que reflecte as preocupações desta professora, filósofa,
feminista, fundamental para o pensamento do feminismo e das
feministas. A propósito do seu círculo de amigos, intelectuais
quase todos oriundos do surrealismo, escreve Beauvoir: “ Tirei
ainda um outro proveito dessa intimidade. Conhecia poucas mulheres da
minha idade e nenhuma que levasse uma vida clássica de casada; os
problemas de Stépha, Camille, Louise Perron, Colette Audry e os meus
eram, na minha opinião, individuais e não generalizados. Em muitos
pontos, compreendera quanto, antes da guerra, pecara por abstracção:
sabia agora que não era indiferente ser judeu ou ariano; mas não me
tinha apercebido de que houvesse uma condição feminina.
Subitamente, encontrei um grande número de mulheres que tinham
ultrapassado os quarenta e que, através da diversidade das suas
possibilidades e méritos, haviam tido uma experiência idêntica:
tinham vivido como «seres relativos». Como eu escrevia, como a
minha situação era diferente da delas, e também, penso eu, como
sabia escutar, disseram-me muita coisa; comecei a dar conta das
dificuldades, das aparentes facilidades, dos logros e dos obstáculos
que a maioria das mulheres encontra pelo caminho; senti também que,
naquela medida, eram simultaneamente diminuídas e enriquecidas. Não
dava ainda muita importância a um assunto que só indirectamente me
dizia respeito, mas a minha atenção foi despertada.” (pág. 481)
10 de Julho de 2022
Almerinda Bento