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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A Escolha do Jorge: Talvez Esther

"Talvez Esther" é o romance de estreia da jornalista ucraniana Katja Petrowskaja (n. 1970) que foi recentemente publicado em língua portuguesa através da Quetzal Editores.
A autora parte da ideia de felicidade beliscada durante o período da sua infância tendo em consideração que não tendo motivos para sofrer, sempre lidou com uma inexplicável sensação de falta que originava uma certa amargura. Tal prendia-se pela sua curiosidade face aos seus ascendentes de quem colhia informações dos seus pais e avós.
Tendo nascido em Kiev, na Ucrânia, Katja Petrowskaja decide partir à busca dos entes queridos e dos locais onde viveram parte das suas vidas, embarcando, assim, numa profunda escavação rumo ao passado.
Entre nomes dos quais já conhecia e outros que veio a descobrir mais tarde, Katja Petrowskaja vai até às origens da sua família, na Polónia, quando este país, no século XIX, ainda era parte integrante do Império Russo. Alguns dos elementos da sua família passaram pela 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917, a Burguesa (Branca) primeiro e depois a Bolchevique (Vermelha) e, mais tarde, a passagem do Império Russo à constituição da União Soviética assente no marxismo-leninismo, primeiro com Lenine, seguido de Estaline. A 2ª Guerra Mundial não foi esquecida e alguns dos seus familiares foram deportados para vários campos de concentração à semelhança do destino de milhares de judeus que foram assassinados durante esse flagelo que a História conheceu e registou.
Mas regressando à Polónia e a Varsóvia especificamente. Varsóvia era em 1939, aquando do início da 2ª Guerra Mundial, a cidade europeia com mais judeus. Numa cidade com mais de um milhão de habitantes, a população judaica chegava aos 39% dos seus habitantes. 39 é uma mera coincidência, coincidência que culmina na invasão da Polónia a 1 de setembro de 1939 por parte da Alemanha Nazi, iniciando dessa forma a 2ª Guerra Mundial terminando somente em 1945. Varsóvia foi de longe uma das cidades mais destruídas durante a guerra.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e consequentemente, o fim da "Cortina de Ferro" e da própria URSS, assistiu-se a uma gradual abertura das fronteiras e logo, nesse ano, a autora, com apenas 19 anos, visita a Polónia pela primeira vez no intuito de encontrar a "velha Warszava" que afinal, já não existia. Vagueando então por Varsóvia "com a sua história construída de novo", a autora constata que nunca teria nascido se a sua família tivesse ficado naquela cidade em 1915 devido a acontecimentos fulcrais que aconteceram a posteriori.
A sensação de perda inicialmente referida pela autora tem agora o impacto direto na melancolia que sente ao deambular pelas ruas de Varsóvia em 1989. Katja Petrowskaja procura a localização da residência-escola de surdos-mudos dos seus familiares, mas tudo o que procura tem eco na palavra gueto. Se o gueto agora não existe, a rua e a casa tão-pouco. Uma cidade em ruínas a céu aberto foi o que restou de Varsóvia com a 2ª Guerra Mundial. Mas escavando um pouco mais no passado, Katja Petrowskaja conhece um indivíduo por interposta pessoa que coleciona fotografias da Varsóvia perdida, da Varsóvia antes da guerra e é através desse indivíduo que vislumbra como era a Ulica Ciepła o o edifício que tanto procurava graças a uma fotografia adquirida no eBay.
Confrontada com o destino de parte da sua família semelhante ao de milhares de judeus, a autora questiona-se como é que o seu bisavô deixou o seu filho na Polónia quando o resto da família se mudou para Kiev, na Ucrânia.
Mas a troca de Varsóvia por Kiev não poupou a família de Katja Petrowskaja à loucura dos nazis na medida em que, em setembro 1941, em somente dois dias, foram assassinados mais de 33000 judeus em Babi Iar, Kiev, sendo considerado o maior massacre do Holocausto. Foram vários os elementos da família da autora que perderam a vida em Babi Iar ao ponto de referir "Babi Iar faz parte da minha história, não me foi dado azo a outra (…). Há outra coisa que me traz aqui, que é eu acreditar que não há estranhos no que toca a vítimas. Toda a gente tem aqui alguém." (p. 158) E Katja Petrowskaja tem pelo menos a sua bisavó que talvez se chamasse Esther e que se dirigiu sozinha ao encontro dos nazis em Babi Iar.
Ao longo da obra, Katja Petrowskaja vai-nos relatando inúmeras histórias do foro privado dos vários elementos da sua família como forma de compreender as motivações dessas mesmas pessoas perante determinados acontecimentos, mas também percebemos que certos acontecimentos que ocorrem particularmente poderão servir de alavanca para grandes acontecimentos da História ou ainda situações várias, particulares, que, no seu conjunto, participam num dado acontecimento histórico.
À semelhança da História, também a narrativa vai evoluindo recorrendo tantas vezes à mitologia grega, à literatura, num discurso que alterna entre o discurso direto e o indireto, com doses substanciais de humor à mistura e tendo a melancolia sempre como pano de fundo.
A narrativa é construída através das histórias que vão passando dos avós e dos pais para a autora ao longo da sua vida, não esquecendo objetos e documentos históricos, tais como, certidões de nascimento e de óbito, de casamento, fotografias, e das próprias viagens aos locais referidos ao longo da obra.
O que consegue Katja Petrowskaja com "Talvez Esther"? Compreender a evolução e o rumo da sua família perdida na História tentando igualmente compreender a História em si mesma que tão dependente está das motivações dos homens que detêm o poder em determinados períodos e geografias. Compreender o que aconteceu à Europa perdida, à "Mitteleuropa" desaparecida que estava associada à cultura judaica tão enraizada no Velho Continente até às vésperas da 2ª Guerra Mundial.
O que deseja Katja Petrowskaja desde criança com vista a terminar o seu sofrimento (in)consciente? "O sonho voluptuoso de uma grande família a uma mesa comprida perseguia-me com a constância de um ritual." No fundo, a grande família europeia.

Excertos:
"Nunca percebi porque é que esta infelicidade há de ser sempre a infelicidade do outro. «Todos os judeus da cidade de Kiev e arredores devem apresentar-se na segunda-feira 29 de setembro de 1941, pelas oito horas, na esquina das ruas Melnik e Dokterivski (junto ao cemitério)» Foi o que a Wehrmacht aficou e o encarregado tinha prontos os seus livros, para ter a certeza de que eles iam realmente todos. Quando chegaram perto de Babi Iar tiveram de despir as suas roupas e de passar nus entre as filas de polícias que lhe berravam e batiam – e ali, onde se via o céu pela abertura do barranco, foram abatidos por metralhadoras disparando dos dois lados. Ou então: sobreviventes nus jazem em cima de cadáveres nus, em vez de os fuzilarem atiram simplesmente as crianças para cima dos corpos, para os enterrarem vivos, o que poupa munições.
Atravesso uma paisagem plana coberta de brejos. A ação decorreu sem incidentes, informou para Berlim o comandante do destacamento no princípio do outubro de 1941. Foi aqui? Há pessoas passeando, conversando, gesticulando ao sol. Não ouço nada. O passado engole todos os sons do presente. Mais nada chega aqui. Não há mais lugar para a novidade. Para mim, é como se estes que passeiam e eu nos deslocássemos em ecrãs diferentes. Haverá nos seus gestos alguma coisa reveladora das origens da violência humana? Ou da tendência para se ser vítima? Preferiria eu que Babi Iar parecesse hoje uma paisagem lunar? Exótica? Tóxica? Todas as pessoas… roídas de dor? Porque não veem elas o que eu vejo?
(…)
Quando no verão de 1943, o Exército Vermelho se aproximava de Kiev, os trezentos prisioneiros do vizinho campo de concentração de Syrez tiveram de desenterrar os mortos dia e noite, construir pilhas de 2500 cadáveres cada, queimá-las e a seguir triturar os ossos. O pó não se pode contar. As pessoas foram forçadas a esconder as provas e seriam mortas depois para que aqueles que as tinham visto fossem também apagados e no fim não restasse nada, nenhum vestígio, nenhuma pessoa, nenhuma narrativa. Os prisioneiros de guerra suspeitaram do seu destino e tentaram fugir. Desses trezentos sobreviveram no máximo catorze – as únicas testemunhas." (pp. 159, 161)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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