Não me recordo do momento exacto em que comecei a escrever. Lembro-me, contudo, que antes de saber fazê-lo já inventava histórias, mas contava-as através de ilustrações. Mais tarde, por volta dos dez, doze anos, comecei a criar pequenos enredos, relativamente simples, baseados não na minha vida, mas nas suas possibilidades. Recordo-me que teriam cerca de doze páginas, gradualmente ampliadas que, conforme cresciam, iam contanto histórias mais complexas. Costumo pensar para mim que a escrita é um trabalho solitário, e felizmente assim é. Não segui arquitectura, como cheguei a ambicionar, porque não tinha jeito com números. O meu talento, se tenho algum, prende-se com as letras. E acabei por ser arquitecta. Crio mundos, pessoas, situações. Dou-lhes as cores, a dimensão e a profundidade que entendo. Atiro-os ao chão e levanto-os. Geralmente, a minha inspiração vem de histórias próximas, e ficciono-as, manipulo os acontecimentos, as épocas, as reacções, até explorar uma outra possibilidade de final, que não a autêntica. Resumidamente, aplico massivamente o e se?
Quando, em 2009, abri pela primeira vez o documento que intitulei de imediato de "Demência", sabia que não seria um daqueles rascunhos a ser eliminados ou abandonados mais tarde. Como frequentemente, tinha duas histórias paralelas, uma que se desenrolou no passado e que explica grande parte do presente, e outra a suceder actualmente e a necessitar de ser resolvida. Deste modo, juntei duas personagens que há muito pairavam na minha mente - uma senhora a começar a padecer de Alzheimer, e uma jovem mãe vítima de violência doméstica, pressionada ao limite e autora de um crime socialmente imperdoável, especialmente em meios reduzidos, como é o caso. Quis que ambas as personagens fossem protagonistas de uma história de sobrevivência, que as suas essências coincidissem nesse ponto e fossem motivo de incompreensão mútua. Quis valer-me da ironia da vida, do destino, dos caminhos que parecem despregados e que se entrelaçam e fazem sentido em situações impensadas. Quis incluir um pouco do improvável neste enredo realista. Creio que os acontecimentos retratados são familiares a muitos portugueses. Nem que provenham da história de um primo afastado ou de uma vizinha. Considero que este romance é uma deambulação no nevoeiro. As personagens estão interiormente atormentadas por erros que cometeram ou obstáculos que não conseguem transpor e fica ao vosso critério descobrir se virá, ou não, o tão desejado sol sobre as suas cabeças. Quis dar azo a um debate social - velhice, solidão, aborto, pobreza, violência doméstica, justiça, doenças degenerativas, tradição - e a uma luta interior - culpa, arrependimento, sacrifício, redenção e desespero. E creio que o consegui. Reafirmo que esta história não é, especificamente, a história de ninguém. Mas é, seguramente, a história de alguém.
Célia Correia Loureiro
Despertou-me curiosidade!
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