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segunda-feira, 28 de abril de 2025

"Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule" de Édouard Louis

Já tinha ouvido falar bem deste livro e o empréstimo de uma amiga fez com que passasse à frente dos que cá tenho...

Antes de mais quero referir que fiquei fã da escrita do autor. É o seu primeiro romance, auto ficção. escrita com uma clareza impressionante, vinda de alguém que, provavelmente, reflectiu muito sobre os acontecimentos descritos, se auto analisou  com profundidade, de alguém que superou traumas e factos de uma dureza tremenda. A escrita na primeira pessoa traz, como gosto, um aspecto muito pessoal a esta história. 

História que me tocou profundamente. Eddy cresce entre o amor e o ódio a si próprio. Sente que é diferente dos rapazes que conhece, dos irmãos. Os outros fazem-no sentir diferente, tratam-no com desprezo, é objecto de bullying. São cenas violentas, impressionantes. Nascido uma pequena aldeia, o espaço onde circula é claustrofóbico, as opiniões sobre a sua diferença espalham-se rapidamente.Os pais não são um porto de abrigo. A pobreza é extrema, a fome não fica de fora da porta de sua casa. Não conhece outras realidades, não sabe o que se passa consigo, o seu corpo não obedece à sua tentativa de se normalizar, de ser igual aos demais.

"Mas em primeiro lugar não pensamos espontaneamente na fuga porque ignoramos que existe outro mundo. Não sabemos que a fuga é uma possibilidade. Tentamos inicialmente ser como os outros, e eu tentei ser como toda a gente." pág 136
...
"Estava finalmente curado. No caminho de regresso da escola para chegar a casa, repeti essa verificação vitoriosa como um refrão que tivesse ouvido continuamente, cada vez mais forte, de modo algum apaziguador, já que, pelo contrário, sentia o meu corpo cada vez mais exaltado, senão mesmo desenfreado." pág. 143

Muito duro, cru. Vidas que nos atingem com força e que nos fazem pensar e reflectir sobre o sofrimento de quem pode estar a passar pelo mesmo.

Quero muito ler os outros livros do autor, difíceis de encontrar, para saber mais sobre ele.

Terminado em 22 de Março de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse
Criado no seio de uma família da classe trabalhadora, na Picardia, interior da França, Eddy não é igual às outras crianças. Os seus modos, a sua maneira de falar e a sua delicadeza valeram-lhe humilhações, ameaças e a incompreensão, tanto por parte dos colegas de escola, como do pai, um duro, alcoólico e irascível, e da mãe, uma mulher cansada e alheada.

Eddy cresce assim, preso na contradição de tanto gostar como odiar a pessoa que é, do fascínio e asco pelos seus desejos mais íntimos, de querer a liberdade de uma outra vida, mas nunca conseguindo colocar verdadeiramente de parte o seu amor pelos pais.

Primeiro romance de Edouard Louis, que lhe valeu o imediato aplauso da crítica e a fama internacional, Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule é um livro audacioso, feito de memória pessoal e de ficção, um romance temerário e franco, que procura responder à derradeira pergunta: como pode cada um de nós inventar a sua própria liberdade?

Cris


quinta-feira, 24 de abril de 2025

“Homens Sem Regras” de Edward Cahill

Ouvi várias referências a esta obra e passei-a à frente de muitas que cá tenho. Tudo  começa com um rusga policial em Nova Iorque nos anos 60, num bar clandestino frequentados maioritariamente por gays. São presos aqueles homens que não conseguem fugir atempadamente. O autor aborda a construção de três personagens, desconhecidos entre si, que se vêm atrás das grades. Roger, banqueiro de Wall Street, casado e pais de duas crianças; Julian, professor universitário, comprometido com uma jovem amiga, amante de Gus; e Danny, jovem irlandês, cuja família o expulsou de casa devido à sua forma de estar e de se apresentar, gerente de um supermercado. Todos têm a perder caso se saiba que se encontravam nesse bar, os empregos e as vidas duplas que possuem.

Vamos acompanhando as reacções e a vida destes homens, desconhecidos entre si, e os problemas que sentem e surgem com essa detenção. São libertados. E quando julgam que se livraram dos seus medos… E mais não conto porque perderiam todo o interesse na leitura que saltita na descrição dos acontecimentos e sentimentos entre eles. Nada me pareceu irreal, bem pelo contrário. A dureza, a brutalidade nele retratada, a incompreensão, o julgamento negativo sobre a sua homossexualidade, questão em nada relevante no contexto de trabalho, por exemplo, e que é determinante para o despedimento. Tudo me pareceu verosímil e bem retratado. As dúvidas e incertezas que muitos homens sentiam, a vida dupla…

Os temas apresentados ainda são actuais nalgumas partes do mundo como por ex.a repressão sexual. A questão da procura de identidade muito bem retratada também. O final fica um pouco em suspenso. O que se poderá inferir daí? 

Nada a apontar na trama bem direccionada. Um único senão: achei desnecessárias algumas descrições que, segundo a minha opinião, em nada acrescentaram ao romance. Não era o que procurava aqui.

Terminado em 20 de Março de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse

VENCEDOR 2023 BEST INDIE BOOK AWARD
FINALISTA DO INDEPENDENT PUBLISHER BOOK AWARDS 2024
SELEÇÃO PRÉMIO VCU CABELL FIRST NOVELIST AWARD
Um romance tocante e repleto de nuances, que traça o destino de três homens surpreendidos por uma rusga policial num bar clandestino de Nova Iorque nos anos 60.

Roger é um banqueiro de Wall Street e um homem de família com um segredo muito bem guardado.

Quando se vê confrontado com o alarido e o brilho das lanternas policiais, a vida que ele tão cuidadosamente criou ao longo dos anos – um escritório com vista para a Broadway, uma casa em Beechmont Woods, uma mulher e dois filhos – está prestes a desmoronar-se.

Julian, professor de literatura na Universidade de Columbia, vive uma vida tranquila até à sua primeira relação séria, que o leva ao limite.

Como poderá ele explicar ao seu amante, Gus, um jovem artista destemido, que não pode estar com ele no fim de semana porque tecnicamente ainda está comprometido e a sua noiva vem de visita?
Mas, quando Gus é ferozmente atingido pela polícia na mesma rusga policial, Julian esquece tudo para ir em seu auxílio, mesmo que isso signifique deitar tudo a perder.

Para Danny, um despreocupado e atrevido católico irlandês que vive no Bronx, a rusga policial é um momento galvânico de máxima exaltação.

O rapaz pouco tem a perder, já que a família acabou de o deserdar, mas assim que o seu nome aparece no jornal associado à obscuridade dos bares gay, é despedido do seu emprego como gerente de supermercado.

É aqui que se dá o início da sua viagem descendente de promessas e juras de vingança.

Com um ritmo acelerado e totalmente absorvente, Cahill mantém-nos ansiosos por saber o que vem a seguir, conduzindo o leitor a uma tensão crescente, confinada aos limites do medo, do amor e da vergonha.

«UMA PROSA EXTRAVAGANTE E SEDUTORA.

UM TRIUNFO ABSOLUTO!» Amber Dermont
«A NOVA IORQUE DE MEADOS DO SÉCULO XX NUNCA FOI TÃO ASSUSTADORA NEM TÃO BELA.» Benjamin Nugent

Cris



quarta-feira, 23 de abril de 2025

A Convidada Escolhe: "Um Dia na Vida de Abed Salama"

Um Dia na Vida de Abed Salama, Nathan Thrall, 2023

Desde que me conheço que ouço falar da Palestina e do conflito que opõe Israel à Palestina, com a anexação sistemática de território, com as restrições de mobilidade que tornam a Palestina uma prisão a céu aberto, dos quilómetros de muro que separam os territórios e os povos, das ocupações por colonatos israelitas, das prisões arbitrárias, das mulheres que dão à luz nos checkpoints porque não chegaram a tempo à maternidade… e penso que desde o dia 7 de Outubro de 2023 já ninguém pode dizer que não sabe, que não viu o genocídio que está a acontecer na faixa de Gaza e na Cisjordânia. Ele passa todos os dias nas televisões e já não há palavras para um horror desta envergadura.

Recentemente, vi “No Other Land” vencedor do óscar para melhor documentário, que retrata o dia a dia da ocupação israelita e a resistência palestiniana. Já depois de ter recebido o óscar, o realizador foi preso e agredido. Este “Um Dia na Vida de Abed Salama”, escolhido para leitura num dos clubes de leitura que acompanho, é um impressionante testemunho e relato de um episódio, mas é muito mais do que isso, porque nos dá o contexto histórico de um povo até aos nossos dias. Permito-me transcrever as palavras de Francisco Louçã, um dos coorganizadores deste clube de leitura, a propósito deste livro: "Thrall, judeu, educado na Califórnia, vive em Jerusalém (já viveu em Gaza) e é jornalista. Nunca escondeu o seu empenho na denúncia dos abusos da ocupação israelita. Este livro, de que a edição portuguesa foi a primeira tradução, foi publicado em 2023 e ganhou o Pullitzer numa categoria de não-ficção em 2024, e é uma poderosa reportagem sobre um pai que procura o filho, que pode ter sido vítima de um acidente com o seu transporte escolar. Não é um romance, mas retrata os seus personagens com um cuidado que faz disto uma grande peça da literatura. Não é um manifesto, mas mostra-nos as condições degradantes da vida da população palestiniana, bem como a persistência da resistência - e até a humanidade que se descobre em alguns dos representantes do outro lado. E é tremendo, caminhamos para o abismo e sabemo-lo desde a primeira página. É por isso uma desistência fatalista? Não, será mesmo um dos livros mais cheios de esperança dos últimos anos, pois naquele horror absoluto encontram-se gestos e emoções que compreendemos e nos comovem."

O livro começa com um prólogo que ajuda a situar-nos em Anata, o local onde Abed Salama vive com a sua família. Um local caótico, sem infraestruturas, que antes tinha sido uma zona rural. Abed é casado com Haifa, tem dois filhos: Milad de 5 anos e Adam de 9. Milad vai fazer um passeio escolar e a carrinha em que viaja com os colegas e os professores é abalroada por um camião e incendeia-se. Aquilo que deveria ser um dia feliz para as crianças tornou-se uma tragédia para as cinco crianças e a professora que morreram e para o condutor da carrinha que ficou com danos irreversíveis. “O acidente destruíra todas as famílias, cada uma à sua maneira”. (p. 194)

O livro relata-nos as condições que propiciaram o desastre, a ausência da prestação de socorro pelas autoridades israelitas, os bombeiros que não apareceram, o não deixarem as ambulâncias palestinianas passarem nos postos de controlo, todo um labirinto de restrições que espelham a desumanidade das autoridades israelitas numa situação de desastre, mas que é o espelho do dia-a-dia da população árabe. As dificuldades de Abed até saber para que hospital Milad tinha sido levado, se estava vivo ou não resultam do facto de ser palestino, de ter um cartão de identidade de cor verde, sinal de que já tinha sido preso. Mas o livro está igualmente cheio de exemplos de solidariedade entre árabes e judeus, o que é o raio de esperança neste conflito sem fim à vista.

Quando pensamos na expulsão e fuga de mais de oitenta por cento dos palestinianos naquilo que foi a Nakba em 1948, as acções de resistência, as Intifadas, as prisões de crianças, os massacres, as organizações políticas no terreno com as suas diferenças, as traições, os acordos de Oslo, as resoluções nunca cumpridas, compreendemos que o ódio é o combustível para um conflito interminável e em que o desequilíbrio de forças é brutal. No documentário “No Other Land” é inesquecível a cena em que os tanques e os buldozers vêm derrubar uma escola, mas antes os soldados israelitas fecham a porta da escola para que as crianças não possam sair. Têm de saltar pela janela se não querem ficar debaixo dos escombros.

Este ódio está bem expresso no epílogo do livro “Um Dia na Vida de Abed Salama”, a propósito de uma reportagem televisiva feita pelo israelita Arik Weiss sobre o acidente da carrinha. “O motivo de interesse da história não era o acidente em si, mas a reacção de alguns jovens israelitas, que exultaram com a morte das crianças palestinianas. Arik ficara consternado com a enxurrada de publicações e comentários no Facebook que celebraram a perda de vidas:

«Hahahaha 10 mortos hahahaha, bom dia.»

«É só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena que não tenham morrido mais.»

«Óptimo! Menos terroristas!!!!»

«Notícias alegres para começar a manhã.»

«O meu dia tornou-se uma doçura!»

O que chocara Arik não era tanto o conteúdo das mensagens, mas o facto de muitos dos seus autores exibirem livremente as suas identidades. Como afirmou na introdução da peça jornalística, essas pessoas escreviam sem se esconderem atrás de um teclado anónimo, sem vergonha. E muitas das publicações eram escritas por estudantes do ensino básico e secundário. Arik ficou intrigado com esse elemento. Estes adolescentes estavam a viver um período de paz invulgar. Alguns deles eram demasiado novos para se lembrarem da violência dos anos 90 e da Segunda Intifada, mas pareciam ser mais racistas do que as gerações mais velhas.” (p. 195)

“Um Dia na Vida de Abed Dalama” é um valioso trabalho de não-ficção, um instrumento muito honesto e corajoso para mostrar a realidade do conflito israelo-palestiniano. Um livro notável, a ler e divulgar.

26 de Fevereiro de 2025

Almerinda Bento

terça-feira, 22 de abril de 2025

"Vamos Fazer Melhor" de Gidon Lev com Julie Gray

Acho importante ler o testemunho de alguém que viveu a II Guerra, que foi afectado profundamente por ela. Gidon Lev Tinha seis anos quando foi preso, juntamente com a sua família, tendo sido levado para Theresienstadt, campo de concentração na cidade de Terezin, na República Checa. 

Theresienstadt foi uma fortaleza construída entre 1780 e 1790 por ordem do imperador austríaco José II. O forte foi usado para manter prisioneiros militares e políticos. Em 1941 a cidade foi transformada num gueto murado,, mostrado como modelo de recolocação de judeus e que mais não era que um campo de concentração temporário onde os prisioneiros eram reencaminhados posteriormente para Auschwitz. (Fonte dos dados históricos: Wikipédia). Mais tarde ou mais cedo, os prisioneiros  que não morriam de fome, doenças ou assassinados em Theresienstadt, acabavam nas câmaras de gás deste campo de extermínio.

Um factor comum à maior parte dos sobreviventes dos campos de concentração, era a necessidade premente de sobreviverem fora deles, uma urgência de viver e esquecer o mais rapidamente possível o que tinham acabado de presenciar e vivenciar. Poucos falavam do que lhes tinha acontecido. É preciso lembrar que a recepção por parte de quem nunca esteve num campo também não era muito calorosa, nem tampouco imaginavam os horrores que se cometeram lá. A vida fora dos campos não trouxe a ajuda de que necessitavam. O silêncio foi a opção mais escolhida.

Gidon Lev sobreviveu. Tinha dez anos quando foi libertado juntamente com a sua mãe. Este livro fala-nos dos tempos passados nesse campo, e também, da sua vida pós libertação até aos dias de hoje. Ainda vivo, Gidon passou por muitos reveses (por exemplo um cancro e recidivas). A sua resiliência é um exemplo a ter em conta.

Vale muito a pena conhecer a sua vida.

Terminado em 19 de Março de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
Aos seis anos, Gidon Lev foi colocado no Transporte M com o número 885 e preso no campo de concentração nazi de Theresienstadt, até completar dez anos.

É uma das duas mil crianças que se calcula terem sobrevivido ao campo.

O seu pai foi enviado para Auschwitz, onde foi tatuado como prisioneiro B12156.

Perdeu vinte e seis familiares no Holocausto.

Apesar de tudo o que Gidon enfrentou, e agora com noventa anos, continua a acreditar que muitas pessoas boas fazem coisas boas para tornar a nossa sociedade num lugar melhor.

E é isto, entre outras coisas, que lhe dá uma enorme quantidade de esperança.

É a esta Esperança que se agarra.

Gidon acredita que temos de fazer do mundo um lugar melhor, cada um à sua maneira.

Independentemente do que enfrentamos, é tão fácil - e grandioso - quanto isso.

Partilhando a sua história de vida, espera inspirar e ajudar as pessoas a perceber o que é ser esperançoso e que tudo é possível, mesmo nos momentos mais negros.

Encarar a vida de forma positiva pode salvar-nos a nós próprios, e ao mundo.

Cris


segunda-feira, 21 de abril de 2025

"Uma Família Em Bruxelas" de Chantal Akerman

O começo é abrupto, como se fosse o seguimento de uma ideia já referida: "Além disso..." colocando o leitor num estado de surpresa e atenção que me agradou. A escrita é corrida, algo repetitiva, quase oral, que me levou a ler algumas partes em voz alta para ver se funcionava melhor comigo. Mas nem assim me agradou. Gostos...

É um monólogo intenso, compacto, um fluxo de pensamento constante que, a mim, me cansou sobretudo pela quase inexistência de pontuação pese embora seja um livro muito pequeno em tamanho e páginas. A narradora é uma mulher que perdeu recentemente o marido, e que recorre a vários episódios do passado, saltitando entre pensamentos, acontecimentos com as duas filhas, o marido e ela própria e o presente.

O tema do Holocausto paira muito ao de leve e, não fora a referência de uma amiga a esse facto, creio que ter-me-ia passado despercebido muito embora a narradora, cujo nome nunca é referido, tenha mencionado que perdeu familiares "nos campos" e que a mãe morreu em 1942, não tendo conseguido realizar os projectos que tinha com ela. 

O AVC do marido despoleta esta dor que é sentida, a dor do luto, uma intensa solidão que o leitor sente através das repetições de frases e pensamentos. 

Compreendo a intenção da autora mas não me prendeu como esperava e gostaria.

Terminado em 30 de Março de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse
Pela janela de um apartamento em Bruxelas vê-se uma mulher, quase sempre vestida de roupão e envolta nas suas memórias. Ela acaba de perder o marido. Por isso passa muito tempo ao telefone, a falar com as filhas, uma em Ménilmontant, um bairro de Paris, outra na América do Sul, e com a família espalhada pelo mundo.

Nesse labirinto de vozes, evoca o vazio que a cerca, com a delicadeza de uma fuga musical. Para além do nome impronunciável da Shoah e do silêncio dos sobreviventes, fala de uma solidão indescritível e dos pequenos arranjos com a vida.

Memórias no meio das banalidades do quotidiano. Uma história de luto sublimada por palavras, Uma Família em Bruxelas é uma conversa íntima como um livro aberto.

Cris

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A Convidada Escolhe: "Na Terra dos Outros"

Na Terra dos Outros, Manuel Abrantes, 2024

Este romance da autoria de Manuel Abrantes é fruto do seu trabalho de investigação na área da Sociologia do Trabalho e das Desigualdades. A figura central é Maria do Carmo, uma rapariga que sai da sua terra aos 11 anos e que vai ao longo da vida trabalhar como empregada doméstica nas casas dos outros.

A par da vida de Maria do Carmo, o livro faz-nos percorrer a vida do nosso país até à actualidade. Maria do Carmo é uma menina que não teve infância e que foi desenraizada para a grande cidade, como aconteceu a tantos milhares de mulheres. Vidas de solidão, de abandono, de humilhação, de subalternidade, de invisibilidade, de negação de direitos. De ficar no quartinho dos fundos, de comer as sobras dos outros, de só sair ao domingo de manhã para ir à missa com a patroa, de nunca ser elogiada pelo seu trabalho, de estar sob suspeita de roubar os patrões, de não ter direito ao descanso… Sempre na terra dos outros. Num Portugal do analfabetismo, da emigração para fugir à fome e à pobreza, da guerra colonial, da PIDE, das conversas em família, da liberdade com o 25 de Abril, da explosão nas ruas com o primeiro 1º de Maio, dos patrões apavorados com as reivindicações, das infraestruturas que se estendem aos campos, das telenovelas, dos subúrbios que crescem…. Tanta mudança! E para as empregadas domésticas, o que mudou?

O autor densifica a história desta mulher como trabalhadora que faz parte de um extenso grupo de mulheres fundamentais para o funcionamento da sociedade, as cuidadoras invisíveis que depois de trabalharem uma vida inteira descobrem que nunca foram inscritas na Segurança Social e, portanto, não têm direito à reforma; das mulheres contratadas por empresas de limpeza que apenas recebem uma parte ínfima do que deviam; do trabalho escravo das mulheres migrantes. Escrava dos patrões, escrava do marido e dos filhos, que a consideram inútil, atrasada e frustrada, só uma enorme força interior permite a esta mulher sair da amargura e da prisão que tem sido a sua vida.

Maria do Carmo cresce sempre com vontade de fugir para um novo começo. Será com a mudança de casa e de patrão, com o casamento, com a possibilidade de ter uma casa que seja sua, com o nascimento dos filhos, será deixando o marido e os filhos e seguir sozinha e liberta para um outro destino? Para um outro trabalho? Maria do Carmo rebela-se, volta atrás, tem remorsos por deixar os filhos, sonha, não tem com quem “confidenciar as suas emoções” (pág. 101), culpabiliza-se, cai, levanta-se, luta. A cena da bicicleta (págs. 166 e 167) é das mais expressivas sobre a capacidade desta mulher lutar e se erguer das adversidades. “O que ela se interrogava era como faria para abrandar e imobilizar a bicicleta sem tombar desamparada. Ocorreu-lhe que seria mais prudente conservar-se em movimento, rua após rua, esquina após esquina. Ali estavam já os dois jovens diante do bloco de apartamentos, os seus filhos adolescentes a olharem para ela pasmados, tão pasmados que seriam incapazes de rir ou de protestar.”

Carmo é uma lutadora, uma resistente. Quantas mulheres como Maria do Carmo conhecemos? Por quantas passamos no dia-a-dia nos transportes públicos bem cedo pela manhã a caminho da primeira casa do dia, do idoso acamado a quem é preciso lavar, dar os medicamentos e o almoço, de mais um escritório para limpar ao fim do dia? Mulheres anónimas, invisíveis, mal pagas, descartáveis.

Manuel Abrantes quis com este livro retirar estas mulheres da invisibilidade. Quis dar-lhes nome, rosto e futuro. Um dia, uma das patroas de Maria do Carmo, uma das poucas que se sentara para a ouvir, dissera: “…que a vida de Maria do Carmo já dera voltas suficientes para encher um livro.” (pág. 282). Ele aqui está.

5 de Fevereiro de 2025

Almerinda Bento

terça-feira, 15 de abril de 2025

“Como Amar Uma Filha” de Hila Blum

Não há como não ficar presa a esta história! A narrativa tem um quê de mistério do qual o leitor se apercebe logo de início e o agarra de imediato. Uma mulher observa duas meninas enquanto brincam. Ela e nós ficamos a saber que são suas netas, filha da sua filha que não vê há muito. Esconde-se para não ser vista, espreita sorrateiramente para dentro de uma janela. Parte sem se dar a conhecer a essas netas que nunca a viram, que não sabem quem é a avó.

A trama passa-se numa cidade holandesa. Yoella vive actualmente em Israel. Foi de propósito confirmar o que lhe tinham dito, foi de propósito “conhecer” as netas, ver a filha Leah. O que está por detrás do afastamento de uma relação que, é-nos mostrado página a página, é cheia de amor e cumplicidade entre mãe e filha? O mistério adensa-se com o avançar da história. A que se deveu o afastamento aparentemente inexplicável entre as duas?

O passado regressa e é-nos dado a conhecer sempre pela perspectiva da mãe, a narradora. Conta esta história na primeira pessoa e cria assim um impacto maior ao leitor. É fácil colocarmo-nos na sua pele. Uma mãe sofrida, que recorda com dor mas muito amor também. E, no entanto, o leitor sente alguma instabilidade mental da parte da mãe que nos leva a não considerar como verdadeiros todos os pontos de vista a que se refere, sendo que se sente presente a depressão que a afectou em alguns momentos da sua vida e o amor que tem pela filha que poderá ser excessivo. 

Os pequenos erros, embora pareçam insignificantes, também afastam. Como referi temos a perspectiva de Yoella, a mãe. Gostava de ter também o ponto de vista da filha, Leah. Porque um pequeno erro para uma pessoa pode ser uma grande erro para outra...

Recomendo sobretudo se querem uma leitura muito absorvente!

Terminado em 10 de Março de 2025

Estrelas 5*

Sinopse
Uma mulher está parada no escuro, numa rua, a milhares de quilómetros da sua casa em Israel.

Espreita através de uma janela iluminada para o interior de uma moradia, nos subúrbios de uma cidade holandesa.

As duas crianças pequenas que observa, enquanto brincam entre a sala e a cozinha, são as filhas da sua única filha, as netas que ela vê pela primeira vez.

No centro da história, no passado, está uma pequena família: pai, mãe e filha – uma família cujos erros foram cometidos por amor; erros esses que se acumularam e criaram uma cisão, um intenso drama psicológico.

Com precisão cirúrgica, Hila Blum analisa as brechas que fendem o amor entre mãe e filha, as coisas que queremos ver e as que preferimos negar, enquanto desenha um mapa íntimo que põe a nu os limites da nossa capacidade de dirigir e controlar os destinos dos nossos filhos.

Enquanto isso, e ao longo do livro, Blum dialoga com outras escritoras da sua geração, cuja obra se entretece com a vida de Yoella, a mãe desta história, construindo um romance de grande força e beleza.

Cris



segunda-feira, 14 de abril de 2025

“Carta De Uma Desconhecida” de Stefan Zweig

Um homem recebe uma carta de uma desconhecida no seu aniversário. Uma carta  de amor de alguém que o amou uma vida inteira, que se atravessou no seu caminho algumas vezes mas a quem ele nunca deu importância, sequer se lembra dela. Conta-lhe como o conheceu, como o amou loucamente, física e emocionalmente sem que ele desse por isso.

Uma pequena novela que se lê num ápice mas que deixa o leitor a pensar. Quantas vezes alguém terá passado na nossa vida sem termos reparado nela? Quantas vezes atribuímos importância a outrem que nem sabe que existimos?

A escrita de Stefan Zweig é muito intensa, e muito rapidamente sentimos uma empatia muito grande pela dor dessa mulher que passa completamente despercebida na vida do personagem principal - um famoso escritor boémio, insensível. Uma mulher que se cruza com ele desde tenra idade, que consegue fazer parte de momentos muito intensos na vida desse escritor, que vê a sua vida transformar-se devido a um acontecimento imprevisto mas que prefere calar-se e passar despercebida. Uma mulher que nunca força, nunca se impõe. Escolhas que impactam as nossas vidas e a dos outros.

Leitura reflexiva, curta mas poderosa. Escritor a ter em conta para ler tudo. Recomendado.

Terminado em 8 de Março de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
Um romancista vienense em voga toma conhecimento, ao ler o seu correio, de que uma mulher o ama secretamente, com um amor absoluto e que dura há vários anos. Intrigado, o escritor apercebe-se de que essa paixão surgiu numa rapariga de apenas 13 anos e que continua na mulher já adulta.

Cris


quinta-feira, 10 de abril de 2025

“Rebentar” de Rafael Gallo

Já andava há muito para ler este livro. Gostei muito do livro anterior, o que ganhou o Prémio literário José Saramago 2022, “Dor Fantasma”. (Opinião aqui)

Este fala-nos de algo que nenhum pai/mãe quer passar: o rapto de um filho. Anos e anos de procura sem sucesso por uma mãe que decide pôr um ponto final. Ninguém a percebe nem apoia nessa decisão. A mãe coragem, exemplo para tantas outras que passam por situações idênticas, quer desistir de procurar? Confesso que, também eu, reagi com estranheza a essa decisão. Mas, entrando na história e percebendo, um pouco, o quão o sofrimento pode ser avassalador e contínuo, consegui adorar esta premissa, tão fora do esperado. 

Foram mais de trinta anos que Ângela não viveu. Com altos e baixos, o seu casamento manteve-se. Rafael Gallo soube colocar-se com mestria dentro desta mãe e exprimir com clareza todas as suas dúvidas, fazer-nos experimentar um pouco desses terríveis momentos, dos seus sentimentos contraditórios a maior parte das vezes. Mesmo esta tomada de decisão não lhe traz momentos de paz. A dor, a culpa, o medo e a esperança de um reencontro que nunca teve lugar e que a manteve numa busca incessante por anos e anos. A procura de um menino de 5 anos, único filho do casal, que se tornou homem e já não se conhece. 

Muito original esta obra que se centra, não nos momentos de busca, mas no desapego de uma vontade que dominou a sua vida, o de encontrar o filho, e em todas as indecisões que a dominam quando procura ela própria assumir interiormente essa decisão.

Vidas paradas no tempo, à espera, mas toda uma família alargada afectada profundamente.

Aconselho. Leitura lenta mas imperdível, sobre um assunto difícil mas tratado com uma sensibilidade extrema. Está de parabéns o autor!

Começa assim: "Chama-se orfã a pessoa que não tem os pais. A condição de pais e mães que perderam os seus filhos, no entanto, nunca foi nomeada."

Terminado em 7 de Março de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse
«Um filho desaparecido é um filho que morre todos os dias. Nem mesmo nas mitologias mais cruéis há tragédia equivalente; essa dor nenhum deus teve de suportar. Cada noite, ao cair, desaba sobre os pais com o peso renovado da notícia: você perdeu sua criança e ela está naquela escuridão afora, desprotegida. Essa mensagem silenciosa se impregna nas paredes da casa, nos vãos entre os azulejos, nos ponteiros dos relógios e nas páginas dos calendários, nos retratos da família, no chão que se pisa.» É esta a morte que Ângela tem enfrentado ao longo dos últimos trinta anos, até ao dia em que decide pôr um fim à espera, certa de que o seu filho, Felipe, não retornará à casa que manteve intacta, nem ao quarto da criança que ele já não será. A voz de Rafael Gallo, sempre acutilante, acompanha o sofrimento desta mãe, por vezes num grito ensurdecedor, constante como as ondas que vêm rebentar junto ao pontão onde Ângela tenta afogar a dor, outras vezes num grito tão silencioso como a espera.   

Cris


quarta-feira, 9 de abril de 2025

“Nem Todas As Árvores Morrem De Pé” de Luísa Sobral

Creio que muitas vezes encerramos as pessoas em compartimentos estanques que reduzem completamente o ser humano. Digo isto porque habituada a ouvir a Luísa a cantar, quando peguei este livro fiquei muito agradavelmente surpreendida. E não tinha razão para isso porque sei que as suas letras são poemas belíssimos e sei, também, que a Luísa é uma leitora atenta. No seu Instagram vai revelando as suas leituras. Mas isso não bastaria para escrever um livro, pensam vocês e bem.

Mas a Luísa fê-lo e ainda bem. A história envolve completamente. O passado e o presente mesclados, uma mãe e uma filha que vivem juntas mas separadas profundamente por um elo, uma ligação que nunca acontece, decisões que se tomam porque se acredita no outro, descobertas que se fazem tardiamente e que trazem consequências irreparáveis. Berlim, a construção de um muro e a separação de famílias. A descoberta devastadora que se pode ter quando se dá conta que o ser humano tem outras faces que não são bonitas de ver, horríveis.

Leiam a sinopse.

A capa é lindíssima, o título não lhe fica atrás. 

Terminado em 3 de Março de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

Este é um romance sobre duas mulheres unidas pela desilusão e pelos cinquenta anos mais tristes da história da Alemanha. 

Com uma estrutura muitíssimo original e uma galeria de personagens inesquecível, Nem Todas as Árvores Morrem de Pé marca a estreia fulgurante de Luísa Sobral na ficção.

Emmi, que nasceu pouco antes de Hitler ascender ao poder na Alemanha, perde o pai na guerra e tem uma adolescência difícil, trabalhando desde muito cedo para ajudar em casa.

É num bar aonde vai com os amigos depois do trabalho que conhece Markus, um homem de Berlim Leste que lhe escreve cartas maravilhosas e por quem se apaixona perdidamente.

Apesar de a mãe torcer o nariz ao seu casamento num momento em que a Guerra Fria está ao rubro, a irmã apoia-a, e Emmi acaba por ir viver com Mischa, como lhe chama, para a RDA.

Inicialmente, tudo corre bem, mas, depois de o Muro de Berlim ser erguido, a separação da família e a chegada de uma carta anónima deixam-na na mais profunda depressão.

M. nasce após a divisão das duas Alemanhas e é o fruto perfeito do socialismo: com uma mãe ausente e educada por uma ama que adora plantas, M.

idolatra o pai, desconhecendo por completo o mundo ocidental e crescendo ao sabor de uma realidade distorcida.

Até que um dia, ao ouvir o testemunho chocante de uma rapariga, descobre que, afinal, não é só o Muro que tem um outro lado.

Cris


terça-feira, 8 de abril de 2025

“Não Saí da Minha Noite” de Annie Ernaux

Annie Ernaux para mim é casa. Gosto de ler os seus livros espaçadamente porque o seu tom intimista e revelador de aspectos da sua vida fazem-me querer conhecê-la melhor, identificando-me com alguns acontecimentos e reacções. E, sobretudo, admiro a sua escrita concisa. Os seus pequenos livros, de auto-ficção, dizem tanto! 

Um diário, escrito em vários momentos da sua vida aquando da descoberta e posterior acompanhamento de sua mãe, doente de Alzheimer. Leitura onde os sentimentos dela se misturam com os nossos, leitores: frustração, ternura, dor, choque. Uma inversão de papéis para a qual ninguém está preparado. Quem nos ensinou a ser pais dos nossos pais? Como se gere o esquecimento a que somos votados quando essa terrível doença progride e nada podemos fazer?

Um livro que mesmo depois de lido permanece em nós. A reflexão impõe-se.

A escolha do título é uma descoberta doce, terna.

Terminado em 1 de Março de 2025

Estrelas: 6* 

Sinopse
No verão de 1983, durante uma vaga de calor, a mãe de Annie Ernaux sentiu-se mal e foi hospitalizada. Aperceberam-se de que não comia nem bebia há vários dias, estava desorientada, revelava falhas de memória. Pouco depois, foi diagnosticada com a doença de Alzheimer. «Não saí da minha noite» foi a última frase que escreveu, numa carta a uma amiga, quando já se encontrava a viver com Annie, que nos três anos seguintes manteve um diário. Aí registou não apenas os sinais do agravamento da doença da mãe, mas também os seus próprios sentimentos ao ver-se impotente, assistindo ao definhar daquele ser que lhe deu vida. «Sonho muitas vezes com ela, tal qual era antes da doença. Está viva, mas esteve morta. Quando acordo, durante um minuto, tenho a certeza de que ela vive realmente sob essa dupla forma, morta e viva ao mesmo tempo, como as personagens da mitologia grega que atravessaram duas vezes o rio dos mortos.»  

Cris


segunda-feira, 7 de abril de 2025

“A Velha Senhora Webster” de Caroline Blackwood

Com um quê de autobiográfico esta obra possui nas suas páginas uma pitada de humor mesclado com poder descritivo sobre o ambiente vivido, tantas vezes pesado, e as personagens, que captam de imediato a atenção do leitor. É um retrato de três gerações, estando no centro da narrativa a bisavó Webster. Três mulheres retratadas, com as suas particularidades muito vincadas, irreverentes, muito à frente do seu tempo. Ficaram aqui, nestas páginas, um pouco da História de Inglaterra, um retrato de época de uma classe social aristocrata.

Uma bisavó fria e excêntrica, uma filha ausente e enlouquecida, uma neta completamente irreverente, alegremente com pretensões a suicida (não encontro outros adjectivos que reproduzam tão bem a tia Lavínia!). A narradora é a bisneta da Sra. Webster, adolescente, que passa algum tempo da sua vida com a bisavó.

“De súbito, a bisavó Webster pareceu-me impressionante. Sobrevivera a tanta gente. Conseguira ser ao mesmo tempo o começo de uma linha e o final de uma linha. Na minha família parecia ser o alfa e o ómega.” Pág 136

Uma escrita fantástica mas simples ao mesmo tempo, certeira e perspicaz, como gosto. Escrita que neste livro faz total diferença. A história, contada de outra forma, perderia o seu encanto. Romance curto, pincelado com um humor algo macabro mas muito intenso.

Um tesouro para ser lido e apreciado.

Terminado em 28 de Fevereiro de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
A Senhora Webster é um monstro fabuloso, a mais fria das matriarcas, que preside com mão de ferro sobre uma paisagem de vidas arruinadas. Mas esta é apenas um dos parentes frios e excêntricos que a narradora adolescente tem de suportar. Outros entes queridos incluem uma avó desvairada e uma tia promíscua e alegremente suicida. Este romance macabro, mordazmente engraçado e parcialmente autobiográfico revela a loucura gótica que grassa nos bastidores das grandes casas da aristocracia, tal como é testemunhada pelos olhos impiedosos de uma adolescente órfã.  

Cris


quarta-feira, 2 de abril de 2025

“Como o Ar” de Ada D’Adamo

Que livro este! Antes de mais, quero dizer-vos que adorei a capa (sim, os meus olhos são os primeiros a avisar-me que “preciso” de um determinado livro!). O abraço que se sente ao olhá-la fez-me bem.

Depois, quero referir que é impossível ficar indiferente a esta leitura. Já não é o primeiro livro que leio sobre acontecimentos pessoais de um autor falecido pouco tempo após a sua publicação. Como este. E isso pesa muito. É um relato fortíssimo contado por Ada sobre períodos da sua vida, sobretudo o nascimento de sua filha Daria, portadora de uma incapacidade muito grande, "holoprosencefalia", e a sua luta com um cancro aos cinquenta anos. Passado e presente mesclados criam momentos de muita empatia com esta mulher lutadora, que tudo fez para que a filha tivesse o melhor do mundo (terapia e amor) e que sabe escrever muito bem, com sentimento mas com uma clareza impressionantes. 

As suas palavras tiveram tal peso na minha leitura que, mesmo agora, pouco posso falar sobre esses momentos lidos sem vivenciar de novo o que senti na altura. É um retrato visceral que tem um enorme impacto para quem o lê. Estejam preparados para uma leitura forte, impactante, dura, sobre momentos de dor que ninguém devia viver. Considero-o, no entanto, um hino à vida, ao amor.

Uma reflexão profunda sobre a doença, o aborto, a deficiência por parte de quem já cá não está. Este livro recebeu o Prémio Strega 2023. Esta autora italiana não o pode receber em mãos.

Para reler. Recomendadíssimo.

Terminado em 25 de Fevereiro de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse
O destino de Daria, a filha, começa a escrever-se quando um diagnóstico inesperado vem ensombrar o seu nascimento. A vida de Ada, a mãe, sofre um enorme sobressalto quando, quase aos cinquenta anos, descobre que uma doença grave lhe consome o corpo e encurta os dias. Mais do que sentença de morte, o cancro que lhe vai roubando as forças torna-se uma oportunidade para se dirigir à filha e contar-lhe a sua história.
Tudo passa pelos corpos de Ada e Daria: as lutas quotidianas, a raiva, os segredos, mas também as alegrias inesperadas e os momentos de uma ternura infinita. Dilacerantes, as palavras que a mãe oferece à filha atravessam o tempo – passado e presente entrelaçam-se numa dança que parece eterna.
Vencedor do prestigiado Prémio Strega 2023, Como o Ar é um romance de extraordinária força. Relato do inabalável amor entre mãe e filha, é também uma história de coragem em que cada momento é oferecido ao leitor como uma dádiva.

Cris


terça-feira, 1 de abril de 2025

A Convidada escolhe: El-Rei, Nosso Senhor, Sebastião José

El-Rei, Nosso Senhor, Sebastião José, Ana Cristina Silva, 2024

Neste romance biográfico sobre a vida e obra de Sebastião José de Carvalho e Melo, Ana Cristina Silva ajuda-nos e recordar a segunda metade do século XVIII em Portugal, sobretudo o período de vigência do rei D. José I, altura em que Sebastião José conseguiu alcançar a notoriedade que o levou a ficar na História.

O romance está organizado em dezoito capítulos encimados por um sumário que acompanha a vida do Marquês de Pombal que nem sempre segue uma ordem cronológica.

Nascido no último ano do século XVII e falecido em 1782, foi ao longo de vinte anos do reinado de D. José I que paulatinamente ganhou uma relevância e um poder tal, passando de “fidalgote” à segunda figura do reino. Ainda no tempo de D. João V tinha sido enviado para Londres como embaixador e para Viena como emissário para mediar o conflito entre o papado e Maria Teresa de Áustria, mas só em 1750, ao ser nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o rei D. José I lhe atribui um cargo de peso no reino. No entanto, são o terramoto de Lisboa em 1755 e a tentativa de regicídio em 1758, as peças fundamentais para a ascensão de Sebastião José na vida política portuguesa da altura. Homem ambicioso, com uma energia imensa e grande capacidade de trabalho, para além da visão do mundo e da realidade do país e da cidade de Lisboa após o terramoto, Sebastião José aproveitou o seu lugar de privilégio como secretário do reino para se vingar das humilhações, invejas e intrigas de quem o via como “fidalgote” e passar a figura temível da corte a quem todos faziam vénias. Com uma visão moderna para a cidade arrasada, rodeou-se de grandes nomes para construir uma Lisboa nova, de modo a que “nunca mais ninguém apelidaria Lisboa de «a famosa estrebaria»” (pág. 33). Tendo como principais alvos a abater o duque de Aveiro, os Távora e os jesuítas da Companhia de Jesus, conseguiu insinuar-se junto ao rei e encontrar culpados para o atentado ao rei, sendo implacável e sem remorsos nas punições que decretou. “Quantas vezes se tem a oportunidade de mudar um país e ao mesmo tempo derrubar os inimigos?” (p. 148). No entanto e desde sempre, Sebastião José se apercebeu que sendo a segunda pessoa mais importante do reino, a sua dependência do rei era absoluta. Em 1759, quando o rei lhe conferiu o título de conde de Oeiras, ele que nunca antes tinha tido um título nobiliárquico, “o seu sangue passou a ser o sangue da alta nobreza” (p. 195).

O declínio físico do rei assolado por várias doenças ditou o fim do conde de Oeiras, que entretanto, aos 70 anos, tinha também recebido o título de Marquês de Pombal. Afinal, a vassalagem, a preferência por “ser temido a amado” (pág. 288) ocultava a hipocrisia dos vassalos do rei, os ódios contra o secretário de D. José I, a sua fragilidade e o ódio do povo que se manifestava n’”as piadas e versos que pretendiam evidenciar a familiaridade reiterada do secretário do Reino com o crime e a malvadez.” (pág. 330). A morte do rei e a subida ao trono de D. Maria conduzem à exoneração e exílio de Sebastião José para a vila de Pombal, longe da corte e sem acesso ao conforto do seu magnífico palácio de Oeiras que a sua mulher Eleonor Ernestina tão dedicadamente tinha providenciado. O processo dos marqueses de Távora é aberto, os quais são ilibados, ao passo que o Marquês de Pombal é considerado culpado, sendo poupado à morte devido ao seu estado de saúde extremamente débil.

Muitíssimo inteligente, toda a sua vida foi pautada pelo tacticismo e a ambição de que o seu nome perdurasse para a história como um grande político com uma obra vastíssima em vários campos, no sentido de engrandecer o país, retirando-o do obscurantismo e fanatismo e dos abusos da velha aliança com a Inglaterra. Por isso, na fase final da sua vida, quando o brilho do poder já não incidia sobre ele, dedica-se a escrever tentando deixar as memórias da sua acção de modo a que a sua reputação não fique manchada para o futuro.

Como é timbre da escrita de Ana Cristina Silva, neste romance histórico a autora é exímia em analisar os estados de alma de um homem com uma personalidade complexa, ambicioso, implacável com os seus adversários, apaixonado, sensível, brutal, manipulador e que apesar do seu poder absoluto, tinha momentos de absoluta solidão e fragilidade. Só alguém como Ana Cristina Silva para mostrar uma época importantíssima da nossa história, a partir duma personagem que, passados quase três séculos, continua a ser controversa.

26 de Março de 2025

Almerinda Bento

Palavras-chave: Marquês de Pombal, D. José I, ambição, poder,

Manuel da Maia, Carlos Mardel, Eugénio dos Santos


sexta-feira, 28 de março de 2025

"O Infinito Num Junco" de Tyto Alba e Irene Vallejo (Graphic Novel)

Este livro encerra um mundo dentro de si, como todos os outros, aliás. Podemos até não gostarmos desse mundo que um livro nos apresenta mas haverá sempre alguém para quem esse livro representa um mundo novo de oportunidades.

Esta obra fala-nos de livros, de como surgiram, onde e os motivos que levaram os
homens a desenvolvê-los, do surgimento das primeiras bibliotecas, de como eles podem representar um perigo e um obstáculo para os ditadores. A palavra oral e escrita como forma de combater as desigualdades. O livro tem infinitas possibilidades e traz-nos tudo o que o mundo contém: liberdade e amor, mas denuncia também a opressão, a dor, o ódio. “Quando vendes um livro a alguém, não lhes estás a vender doze onças de papel, tinta e cola. Estás a vender-lhe uma vida totalmente nova, amor, amizade e humor e barcos que navegam na noite. Num livro cabe tudo.” Pág 79

Há sempre umas partes ou outras que achamos mais ou menos interessantes consoante a nossa disponibilidade em apreciá-las. Aconteceu comigo nesta leitura mas o computo geral é positivo. Li-o devagar ao longo de dois ou três meses, porque a temática assim o permitiu sem perder o norte nem o ritmo de leitura. A autora intercala no decorrer das suas pesquisas, memórias da sua infância e algumas reflexões dando um toque mais intimista à narrativa.

Foca muitos temas, autores, livros e histórias sobre eles. Esta obra contém muita informação e, para mim, foi difícil absorvê-la na sua totalidade, com muita pena minha. Mas alguns pontos interessantes ficaram gravados na minha memória. “Na realidade, os livros podem ser botes salva-vidas. Chegam a qualquer lugar do mundo, inclusive aos sítios mais sinistros.” Pág 126

Uma leitura muito interessante!

Terminado em 22 de Fevereiro de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse

O Infinito Num Junco, de Irene Vallejo, é um hino extraordinário ao amor pelos livros que seduziu milhões de pessoas em todo o mundo.

Este livro sobre livros ganha uma nova vida sob a forma de uma adaptação gráfica do desenhador Tyto Alba, cujas excecionais ilustrações nos transportam até aos campos de batalha de Alexandre, o Grande, aos palácios de Cleópatra, às primeiras livrarias e às oficinas de cópias manuscritas, mas também às fogueiras onde se queimavam códices proibidos, à biblioteca bombardeada de Sarajevo e ao labirinto subterrâneo de Oxford no ano 2000.

Estes desenhos e aguarelas, que contam a história de um artefacto incomparável nascido há cinco milénios, quando os egípcios descobriram o potencial da cana de junco, a que chamaram papiro, tornam-nos participantes na aventura coletiva de quem foi salvaguardando os livros desde aqueles tempos.

«Um testemunho precioso de amor pelos clássicos, pelos livros, pelas bibliotecas e pela leitura.» Nuccio Ordine 

Cris


segunda-feira, 24 de março de 2025

"Quando os Violinos se Calaram" de Alexander Ramati

Uma amiga ofereceu-me um exemplar antigo de um livro das Selecções do Reader’s
Digest, uma colecção Livros Condensados, de que faz parte esta história. Ela sabe que o Holocausto é um tema a que recorro muitas vezes. Confesso que nem olhei para as outras histórias… Não conheço a versão completa e não a descobri nas minhas pesquisas. Mas ainda são 130 páginas com uma letra muito miudinha pelo que, creio, o sumo da história estará cá todo.

Não me lembro de ter lido nada especificamente sobre o Holocausto cigano. Claro que o número de mortos (500 mil) não se compara ao dos judeus assassinados mas considero importante este tipo de documentos para que nada seja esquecido. O autor conta-nos que foi contactado num congresso por um homem de etnia cigana, Roman Mirga, dos seus cinquenta e tal anos, que lhe entregou um manuscrito, por ele escrito. Depois de ter conseguido fugir de Auschwitz, Roman manteve-se escondido numa cave de alguém que o ajudou, escrevendo, no final de 1944, tudo o que tinha acontecido à sua família. O seu pedido foi dirigido ao autor para que o livro fosse publicado na América e não apenas na Polónia.

Que dizer sobre mais esta história real, uma das muitas atrocidades que vieram ao mundo muitos anos depois?

Há um sentimento que, verifico nas minhas leituras, imperava na altura e que fez com que estes povos brutalmente assassinados, não reagissem atempadamente: o horror era tão grande que, na maior parte das vezes, duvidavam que os “boatos” que circulavam fossem realmente verdade. E depois, no caso da etnia cigana, eles não eram judeus. Logo, não tinham com que se preocupar, certo? Quando verificavam que corriam perigo o cerco já se tinha fechado.

Se conseguirem encontrar este livro (quem sabe numa estante de um familiar?), leiam esta história. Vale a pena!

Terminado em 21 de Fevereiro de 2025

Estrelas: 5*

Cris


segunda-feira, 10 de março de 2025

“Despedidas Impossíveis” de Han Kang

Foi a minha estreia com esta autora, prémio Nobel 2024, mas não fiquei encantada. Iniciei bem esta obra mas a meio comecei a achar a narrativa dispersa, com muitas situações onde me perdi no tempo pois a narradora alternava entre passado e presente, entre realidade e sonho com demasiada frequência.

Sinto que perdi qualquer coisa de realmente importante, sobretudo a crítica, o apontar do dedo a actos praticados na Coreia do Sul, desconhecidos para mim, e se calhar, para a maioria das pessoas. Estamos habituados a ouvir falar da Coreia do Norte por vários motivos que não os melhores, mas da Coreia do Sul nem por isso. Este alerta não poderia ter passado despercebido nestas páginas pelo que para ele vão as minha 4 estrelas. Os massacres, relatados aqui, fizeram-me ir pesquisar sobre. 

Os massacres das Liga Bodo tiveram lugar durante a Guerra da Coreia no verão de 1950 contra suspeitos de serem comunistas. Os suspeitos eram alistados à força nas “Ligas Bodo” que mais não eram que campos de reeducação ideológica. O número de mortos ronda mais de 60 mil. Vários massacres tiveram lugar. As execuções eram feitas sem qualquer julgamento. Não se sabe ao certo quantas pessoas foram executadas pelas milícias anti-comunistas por suspeitas de serem simpatizantes do regime norte-coreano. As fotografias existentes das valas com os corpos são impressionantes.

Esta história debruça-se sobre duas amigas (uma delas a narradora) que mesmo separadas fisicamente encontram forma de manter e alimentar essa amizade. Quando uma necessita de apoio, a outra move montanhas para o fazer. O passado familiar de uma delas vem ao de cima, trazendo um passado doloroso.

No entanto, embora não tenha acolhido com simpatia a forma como Han Kang narra esta obra e por ter ouvido falar tão bem de Atos Humanos, quero ler esse livro em breve. A autora é multi premiada e quero conhecê-la melhor através dos seus outros livros que esperam vez na minha estante.

Terminado em 17 de Fevereiro de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse
Numa manhã gelada de dezembro, Kyungha recebe uma mensagem da sua amiga Inseon –internada num hospital de Seul na sequência de um ferimento grave a cortar madeira – pedindo-lhe que a visite urgentemente.

Quando Kyungha chega à enfermaria, Inseon conta-lhe que veio de avião da ilha de Jeju para ser tratada urgentemente e implora-lhe que vá a sua casa dar de comer e beber ao seu periquito, que de contrário morrerá.

Uma tempestade de neve fustiga a ilha à chegada de Kyungha e muitos dos autocarros foram cancelados ou sofreram atrasos.

As rajadas de vento e o nevão constante não a deixam avançar e de repente a escuridão invade tudo.

Kyungha não sabe se chegará a tempo de salvar a ave – nem mesmo se sobreviverá ao frio tremendo daquela noite; e não sabe também a vertigem que a aguarda em casa da amiga, onde a história há muito sepultada da família de Inseon acaba por revelar-se, em sonhos e memórias transmitidas de mãe para filha e num arquivo diligentemente organizado que documenta um terrível massacre ocorrido em Jeju.

Despedidas Impossíveis é um hino à amizade, uma elegia à imaginação e, acima de tudo, um poderoso manifesto contra o esquecimento.

Como um longo sonho de inverno, estas páginas belíssimas formam muito mais do que um romance – iluminam uma memória traumática, enterrada ao longo de décadas, que ainda hoje ecoa no peito de muitas famílias.

Cris