Um Dia na Vida de Abed Salama, Nathan Thrall, 2023
Desde
que me conheço que ouço falar da Palestina e do conflito que opõe
Israel à Palestina, com a anexação sistemática de território,
com as restrições de mobilidade que tornam a Palestina uma prisão
a céu aberto, dos quilómetros de muro que separam os territórios e
os povos, das ocupações por colonatos israelitas, das prisões
arbitrárias, das mulheres que dão à luz nos checkpoints porque não
chegaram a tempo à maternidade… e penso que desde o dia 7 de
Outubro de 2023 já ninguém pode dizer que não sabe, que não viu o
genocídio que está a acontecer na faixa de Gaza e na Cisjordânia.
Ele passa todos os dias nas televisões e já não há palavras para
um horror desta envergadura.
Recentemente,
vi “No Other Land” vencedor do óscar para melhor documentário,
que retrata o dia a dia da ocupação israelita e a resistência
palestiniana. Já depois de ter recebido o óscar, o realizador foi
preso e agredido. Este “Um Dia na Vida de Abed Salama”, escolhido
para leitura num dos clubes de leitura que acompanho, é um
impressionante testemunho e relato de um episódio, mas é muito mais
do que isso, porque nos dá o contexto histórico de um povo até aos
nossos dias. Permito-me transcrever as palavras de Francisco Louçã,
um dos coorganizadores deste clube de leitura, a propósito deste
livro: "Thrall, judeu, educado na Califórnia, vive em
Jerusalém (já viveu em Gaza) e é jornalista. Nunca escondeu o seu
empenho na denúncia dos abusos da ocupação israelita. Este livro,
de que a edição portuguesa foi a primeira tradução, foi publicado
em 2023 e ganhou o Pullitzer numa categoria de não-ficção em 2024,
e é uma poderosa reportagem sobre um pai que procura o filho, que
pode ter sido vítima de um acidente com o seu transporte escolar.
Não é um romance, mas retrata os seus personagens com um cuidado
que faz disto uma grande peça da literatura. Não é um manifesto,
mas mostra-nos as condições degradantes da vida da população
palestiniana, bem como a persistência da resistência - e até a
humanidade que se descobre em alguns dos representantes do outro
lado. E é tremendo, caminhamos para o abismo e sabemo-lo desde a
primeira página. É por isso uma desistência fatalista? Não, será
mesmo um dos livros mais cheios de esperança dos últimos anos, pois
naquele horror absoluto encontram-se gestos e emoções que
compreendemos e nos comovem."
O
livro começa com um prólogo que ajuda a situar-nos em Anata, o
local onde Abed Salama vive com a sua família. Um local caótico,
sem infraestruturas, que antes tinha sido uma zona rural. Abed é
casado com Haifa, tem dois filhos: Milad de 5 anos e Adam de 9. Milad
vai fazer um passeio escolar e a carrinha em que viaja com os colegas
e os professores é abalroada por um camião e incendeia-se. Aquilo
que deveria ser um dia feliz para as crianças tornou-se uma tragédia
para as cinco crianças e a professora que morreram e para o condutor
da carrinha que ficou com danos irreversíveis. “O acidente
destruíra todas as famílias, cada uma à sua maneira”. (p.
194)
O
livro relata-nos as condições que propiciaram o desastre, a
ausência da prestação de socorro pelas autoridades israelitas, os
bombeiros que não apareceram, o não deixarem as ambulâncias
palestinianas passarem nos postos de controlo, todo um labirinto de
restrições que espelham a desumanidade das autoridades israelitas
numa situação de desastre, mas que é o espelho do dia-a-dia da
população árabe. As dificuldades de Abed até saber para que
hospital Milad tinha sido levado, se estava vivo ou não resultam do
facto de ser palestino, de ter um cartão de identidade de cor verde,
sinal de que já tinha sido preso. Mas o livro está igualmente cheio
de exemplos de solidariedade entre árabes e judeus, o que é o raio
de esperança neste conflito sem fim à vista.
Quando
pensamos na expulsão e fuga de mais de oitenta por cento dos
palestinianos naquilo que foi a Nakba em 1948, as acções de
resistência, as Intifadas, as prisões de crianças, os massacres,
as organizações políticas no terreno com as suas diferenças, as
traições, os acordos de Oslo, as resoluções nunca cumpridas,
compreendemos que o ódio é o combustível para um conflito
interminável e em que o desequilíbrio de forças é brutal. No
documentário “No Other Land” é inesquecível a cena em que os
tanques e os buldozers vêm derrubar uma escola, mas antes os
soldados israelitas fecham a porta da escola para que as crianças
não possam sair. Têm de saltar pela janela se não querem ficar
debaixo dos escombros.
Este
ódio está bem expresso no epílogo do livro “Um Dia na Vida de
Abed Salama”, a propósito de uma reportagem televisiva feita pelo
israelita Arik Weiss sobre o acidente da carrinha. “O motivo de
interesse da história não era o acidente em si, mas a reacção de
alguns jovens israelitas, que exultaram com a morte das crianças
palestinianas. Arik ficara consternado com a enxurrada de publicações
e comentários no Facebook que celebraram a perda de vidas:
«Hahahaha
10 mortos hahahaha, bom dia.»
«É
só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena
que não tenham morrido mais.»
«Óptimo!
Menos terroristas!!!!»
«Notícias
alegres para começar a manhã.»
«O
meu dia tornou-se uma doçura!»
O
que chocara Arik não era tanto o conteúdo das mensagens, mas o
facto de muitos dos seus autores exibirem livremente as suas
identidades. Como afirmou na introdução da peça jornalística,
essas pessoas escreviam sem se esconderem atrás de um teclado
anónimo, sem vergonha. E muitas das publicações eram escritas por
estudantes do ensino básico e secundário. Arik ficou intrigado com
esse elemento. Estes adolescentes estavam a viver um período de paz
invulgar. Alguns deles eram demasiado novos para se lembrarem da
violência dos anos 90 e da Segunda Intifada, mas pareciam ser mais
racistas do que as gerações mais velhas.” (p. 195)
“Um
Dia na Vida de Abed Dalama” é um valioso trabalho de não-ficção,
um instrumento muito honesto e corajoso para mostrar a realidade do
conflito israelo-palestiniano. Um livro notável, a ler e divulgar.
26
de Fevereiro de 2025
Almerinda Bento