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sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A Escolha do Jorge: “O Tango de Satanás”


“(…) Irimiás era «o homem das situações desesperadas e pastor de homens sem esperança».” 
(p. 158)

Editado em 1985, “O Tango de Satanás” é o primeiro romance do húngaro László Krasznahorkai (n. 1954) que recentemente foi publicado pela Antígona. Esta obra constitui não só uma das referências do escritor húngaro, como também uma das obras a tomar em consideração neste ano editorial que está prestes a terminar.

“O Tango de Satanás” não é uma obra fácil na medida em que o leitor tem muito terreno por desbravar, necessitando de tempo, paciência e alguma resignação face à pequena comunidade que nos é apresentada.

Herdeiro de uma tradição de autores como Kafka, László Krasznahorkai remete-nos para um universo desesperante tanto quanto apocalíptico. Se por um lado, nas obras de Kafka a ideia de resignação, herdada da cultura judaica, é um dos aspectos a considerar, com László Krasznahorkai, em “O Tango de Satanás” apresenta-nos uma pequena comunidade rural da planície húngara que após o desmantelamento da cooperativa local, ficou ainda mais reduzida, dado alguns dos seus elementos terem partido para outras paragens. A ideia de resignação vivida na pele por parte daqueles que
resistem sem esperança face a um futuro negro serve de mote para todo o romance de László Krasznahorkai.

"(...) Ele sentia-se tudo menos livre: não se decidia a partir, contudo o tempo urgia. Fechou os olhos, tentou imaginar a sua vida futura, a fim de acalmar um pouco essa inquietação «supérflua». Mas, em vez disso, uma forte agitação tomou conta dele e o suor inundou-lhe a testa. Por mais que forçasse a imaginação, esta devolvia-lhe sempre a mesma imagem: caminhava na estrada de terra batida, vestindo um casaco já gasto, com o cabaz de verga desfeita ao ombro, parava e, num passo hesitante, voltava para trás." (p. 192)

Também o aspecto relativo à temporalidade é deveras importante porque a narrativa, não aludindo a um tempo histórico concreto, remete o leitor para o período em que a obra foi escrita, final dos anos setenta e início dos anos oitenta, quando a Hungria vivia sob o jugo comunista. Assim sendo, o autor dá-nos uma ideia pessimista (ou realista) e até fazendo futurologia em certa medida, ao criar esta pequena comunidade perdida no espaço e no tempo, sem eira nem beira, sem expectativas, sem sonhos, sem futuro, antes do encerramento da dita cooperativa, mas também depois. O desmantelamento da cooperativa poderá, em certa medida, constituir a metáfora correspondente ao fim da era comunista e o fim da “cortina de ferro” no Bloco de Leste ou pelo menos esse desejo fortemente implícito, o que só veio a acontecer em 1989 com a queda do Muro de Berlim.

Talvez o melhor recurso que László Krasznahorkai encontrou para ilustrar de modo intenso e severo o sistema de então terão sido as inúmeras referências à chuva e à lama, uma negritude molhada e peganhenta que conspurca tudo e todos até ao âmago da alma dos habitantes que se deixam envolver literalmente pelos fios das aranhas que de forma competente fazem o seu trabalho sem nunca se deixarem ver. São metáforas dentro de metáforas, cadeias dentro de cadeias até ao infinito da desgraça e da podridão.

Esta resignação vivida ao extremo transformou esta comunidade numa espécie de fantasma ou sombra, zombies, quiçá, em que os vários personagens sobrevivem à crueldade perpetrada uns aos outros no meio de tantas pessoas que vivem a sua loucura como podem, uns porque enlouqueceram na sequência da opressão vivida durante anos, outros entregam-se ao álcool, a prostituição, a desorganização geral que contaminou este microcosmos social.

Neste contexto de desolação e miséria social, económica, cultural e também dos valores, surge Irimiás - que dificilmente será esquecido da literatura universal – que era julgado morto há anos e que agora será encarado como uma espécie de messias que conduzirá esta comunidade ao reino da prosperidade e da felicidade.

Acompanhado por Petrina, uma espécie de acólito, Irimiás vai revolucionar esta pequena localidade perdida no espaço e para a qual o tempo já não tinha qualquer importância porque, na verdade, tudo se desmoronou.

"A verdadeira ameaça parecia ser subterrânea, mas a sua fonte era incerta: irrompia, de súbito, um silêncio assustador, e não nos mexemos mais, enrolamo-nos num canto, à espera de protecção, mastigar é uma tortura, salivar, um sofrimento, e ninguém se apercebe já que o tempo desacelera, que o espaço se estreita ao redor de si mesmo, e neste dobrar-se é que ocorre a coisa mais terrível: a inércia." (p. 143)

Mas a questão vai colocar-se com a chegada de Irimiás. Messias ou charlatão?! Há de facto uma espécie de religiosidade, talvez fé, na forma como os habitantes encaram Irimiás, como que um despertar da esperança em retirá-los daquele ambiente de desolação e pavor.

O próprio leitor indagará a natureza e as intenções de Irimiás até ao final do romance, muito embora o próprio Irimiás nos alerte nesse sentido, em conversa com Petrina. “«É por isso que digo que estamos presos para sempre. Há muito que tudo está determinado. Não vale a pena uma pessoa cansar-se, nem acreditar no que os olhos vêem. É uma armadilha, Petrina. E nós continuaremos a cair nela. Quando julgamos que nos vamos libertar, na verdade estamos apenas a mudar as cadeias. Há muito que tudo está determinado.” (p. 225) Mas mesmo antes, no discurso que assinalou o regresso de Irimiás a esta comunidade, este alertou para a cegueira sem precedentes na qual os habitantes mergulharam, na sequência da inércia e indolência das suas atitudes ou por simplesmente terem deixado de viver. "E vós, meus amigos, continuais a arrastar este declínio, longe de tudo o que é a Vida... Os vossos projectos afundam-se uns atrás dos outros, os vossos sonhos naufragam, acreditais num milagre que nunca acontecerá, esperais a vinda de um salvador que devia libertar-vos daqui... 
Mas sabeis que não há mais nada que esperar, porque os últimos anos pesam tanto sobre os vossos ombros, senhoras e senhores, que já ninguém tem força para superar esta inércia, e as gargantas apertam-se todos os dias, e, em breve, já nem conseguireis, sequer, respirar... Mas de que género de... maldição sois vítimas, meus desafortunados amigos?" (p. 178)

Este último excerto é um dos vários exemplos de crítica velada de László Krasznahorkai ao sistema político e económico vigente na Hungria e no Leste europeu, nos anos 80, no entanto, sem dados objectivos em concreto, um excerto desta natureza pode igualmente constituir uma crítica ao sistema político e económico vigente no mundo ocidental nos dias de hoje, podendo-se aplicar aos mais variados contextos.

Numa narrativa que se apresenta dentro de outra narrativa e num universo circular, “O Tango de Satanás” torna-se ainda mais tétrico, denso, obscuro, medonho, apocalíptico e até diabólico ao qual nenhum leitor sai incólume.

Em 1994, “O Tango de Satanás” foi adaptado ao grande ecrã pelo realizador húngaro Béla Tarr, sendo considerado como a sua obra-prima e um dos melhores filmes de sempre.

Excertos:
"Primeiro veio a geada, seguiram-se as frieiras nos lábios e nas mãos, o rebanho fora dizimado, e, então, começaram a receber os salários com uma semana de atraso, quando não havia já nada para comprar... e chegou um momento em que as pessoas disseram que era o fim, que a loja ia fechar. E assim foi. Aqueles que tinham para onde ir desapareceram; os outros permaneceram; e logo vieram as brigas, planos inviáveis voavam pelo ar, todos sabiam melhor do que os outros o que fazer, e, é claro, nada sucedeu. Por fim, estavam reduzidos àquela impotência, só já acreditavam em milagres, contavam nervosamente as horas, as semanas, os meses, e depois já nem sequer isso era importante, passavam o dia encolhidos na cozinha, e se aparecia algum dinheiro, iam logo gastá-lo à taberna." (p. 159)

“Limpou da cara, picada por velhas cicatrizes e escoriações recentes, as teias de aranha que tinha apanhado no caminho, misturou as bebidas, encheu o copo e começou a beber com avidez. Bebeu sem parar, enchendo, engolindo, enchendo, engolindo, inesgotável, como uma máquina insensível, até que a última gota foi absorvida pelo seu estômago gigantesco. Derrubado na cadeira, abriu a boca, em vão tentou arrotar e, de imediato, com as mãos na barriga, cambaleou até um canto da taberna. Enfiou os dedos na garganta e desatou a vomitar. Em seguida, endireitou-se, limpou a boca com as costas da mão. «Está feito», murmurou de regresso ao «bilhar». Pôs nos joelhos o acordeão e começou uma doce balada melancólica. O corpo enorme balançava para a frente e para trás ao ritmo lento da música, e das pálpebras pesadas soltou-se uma lágrima. Se nesse instante lhe perguntassem, seria incapaz de dizer o que se passara. Sozinho no meio de respirações adormecidas, sentia-se feliz por aquele doce canto de soldados o envolver e purificar. Não havia nenhuma razão para parar, e, quando a peça chegou ao fim, recomeçou, uma e outra vez, e, como uma criança no meio de adultos dormindo, sentia uma felicidade imensa, porque ninguém, além dele, o ouvia. E enquanto o som aveludado do acordeão ressoava, as aranhas da taberna lançaram uma derradeira ofensiva. Distribuíram as frágeis teias pelo cimo das garrafas, dos copos, das xícaras, dos cinzeiros, cercaram as mesas, as pernas das cadeiras, e então – com alguns minúsculos fios secretos – ligaram-nas umas às outras, como se fosse importante que, escondidas nos seus misteriosos e indevassáveis esconderijos, pudessem vigiar o mais pequeno gesto, o mais pequeno calafrio, até que a maranha, perfeita e quase invisível, se tornasse invulnerável. Urdiam as suas teias sobre os rostos adormecidos, nas pernas e nos braços, para, à velocidade de um raio, retornarem ao esconderijo, onde quedavam à espreita, prontas para, ao primeiro tremor de um dos seus fios, retomarem o trabalho.” (pp. 164-165)

Texto da autoria de Jorge Navarro


2 comentários:

  1. Quero muito ler este livro, estará nas minhas próximas leituras!

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    1. Já está na minha wish list! O Jorge tem sempre livros " diferentes" das minhas leituras habituais e estou sempre de olho nas suas indicações...bjinho

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