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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A Escolha do Jorge: "A Saga de Selma Lagerlöf"



“Tive sempre presente em mim a ideia e a certeza de que toda a literatura deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.” (p. 103)

A edição de “A Saga de Selma Lagerlöf” de Cristina Carvalho constitui uma agradável surpresa no contexto das publicações neste final de ano. Para quem segue a escritora através da sua página do Facebook, pôde acompanhar a sua recente viagem à Suécia a fim de recolher informação sobre Selma Lagerlöf, a grande e amada escritora sueca, com a finalidade de escrever este romance biográfico.

Escrito num discurso intimista em que por vezes se confundem as vozes de ambas as escritoras, é notável e até comovente a homenagem que é feita a Selma Lagerlöf (1858-1940) por parte de Cristina Carvalho.

Embarcamos nesta viagem literária e não raras vezes ouvimos os barulhos das criaturas da floresta com toda a magia que a imaginação pode criar e transportar. Várias são igualmente as vezes em que nos parece ouvir a própria Selma Lagerlöf no meio de tanta magia e seres fantásticos, mas também junto de personagens maravilhosos e inesquecíveis dos seus romances.

Ler Selma Lagerlöf é descobrir um amor duradouro porque desperta em cada um de nós a vida e o
fantástico, alimenta em nós a ideia fervilhante da vida em que a imaginação e a criatividade precisam de ser estimuladas, fomentando a arte e os valores, no fundo.

Natural da província de Värmland, Selma Lagerlöf transpôs para as suas obras a essência primordial da cultura sueca. Värmland é “a região povoada por seres da mais requintada fantasia: feiticeiras, trolls, gnomos de todas as espécies, duendes, anões e fadas. Em todas a vasta Suécia, é este o território de todas as grandes fantasias.” (p. 34)

Através de uma escrita simples e de fácil compreensão para todos, Selma Lagerlöf rompeu com as correntes literárias de então, o realismo e o romantismo, sendo bastante criticada pelos seus pares, principalmente por August Strindberg. Talvez tenha sido essa ideia de fantástico que tenha despertado a imaginação dos leitores das obras de Selma Lagerlöf e, em função disso, os tenha remetido, para a ancestralidade da sua cultura e esse fantástico que de alguma forma nos desperta.

Selma Lagerlöf desde criança conviveu com a ideia permanente de magia e de fantástico desde as prédicas da velha tia Wennervik que lhe vaticinou o futuro, desde a deficiência numa perna à sua relação com os livros.

O problema físico que paralisou Selma Lagerlöf durante alguns anos obrigou-a a ficar muito tempo em casa, na grande propriedade em Mårbacka, onde nasceu e viria a falecer. Selma Lagerlöf tentava perceber à distância os barulhos e ruídos das rotinas caseiras, da floresta envolvente e de grandes eventos como as caçadas que envolviam vários homens num conjunto de rituais que, no final, esquartejavam os animais, dividindo a carne para as várias famílias envolvidas na caçada.

A par de todos estes momentos e episódios que decorriam ao longo dos anos ao sabor das estações do ano, Selma Lagerlöf contou ainda com a presença de Backa-Kajsa, uma empregada ao serviço da família, que lhe contava histórias repletas de fantasia e mistério sendo reforçadas com uma linguagem corporal adequada. “Com Backa-Kajsa, descrevi grande parte da infância em muitos dos livros que escrevi. Em todos os cenários de festa, de tristeza, de mistério, fantasias, bruxedos e aventuras, de alguma forma, Backa-Kajsa está presente. Tão presente quanto uma imagem e uma lembrança de infância conseguem ser retidas ao longo de toda uma vida.” (p. 68)

Os anos foram passando e Selma Lagerlöf tornou-se professora de História e Literatura numa escola para raparigas. Os seus métodos de ensino tornaram-na bastante popular e acarinhada pelas alunas. A par da sua actividade como professora, Selma Lagerlöf tornou-se numa acérrima defensora do feminismo e dos direitos das mulheres.

Na sequência de um concurso na revista literária “Idun”, em 1890, Selma Lagerlöf publica o seu primeiro romance “A Saga de Gösta Berling”, no ano seguinte, chamando a atenção do grande público. Mais tarde, em 1907, seria publicado o livro que levaria a escritora a conquistar leitores de todas as idades com “A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia”. Estas são as obras mais vendidas de Selma Lagerlöf na Suécia e das mais traduzidas em todo o mundo na sequência da autora ter sido galardoada com o Prémio Nobel de Literatura, em 1909, tendo sido a primeira mulher a receber semelhante prémio. De referir ainda que, em 1914, Selma Lagerlöf tornou-se também na primeira mulher a integrar a Academia Sueca numa época em que só homens eram admitidos.

No que concerne à vida amorosa, a escritora sueca mostrou-se também uma mulher à frente do seu tempo. Tendo como suporte o feminismo e a luta pela emancipação das mulheres, Selma Lagerlöf teve dois relacionamentos amorosos duradouros com duas mulheres, a judia Sophie Elkan e Valborg Olander. “Eu amei duas mulheres, aliás, amei três assuntos femininos, Mårbacka, Sophie e Valborg. Dei-lhes todos os meus melhores sentimentos, sofri e alegrei-me com elas. E o meu sentir apaixonado foi sempre o que tive de melhor na minha vida. Quero lá saber o que pensam de mim! Eu quis amar, dar o meu sangue interior. O meu pai percebeu-me sempre muito bem. Ele sabia o sentia tudo o que está no interior das florestas. Eu fui uma floresta.” (p. 137)

Muito se poderia dizer sobre a vida e a obra Selma Lagerlöf e, na verdade, a autora Cristina Carvalho faz essa chamada de atenção no final deste romance biográfico, no entanto, esta obra constitui um marco na revitalização das obras de Selma Lagerlöf, assim como, reposicionar o lugar da escritora sueca no contexto dos grandes escritores intemporais que deixam marcas indeléveis nos seus leitores. O mesmo se pode dizer deste romance biográfico que nos aproxima ainda mais de Selma Lagerlöf,
aproximando-nos do seu mundo, da sua floresta.

Compreendemos, desta forma, a razão de tantos e tão notáveis escritores oriundos dos países do Norte da Europa serem considerados “propriedade cultural” de toda a região e não somente do país de nascimento de cada um. A universalidade dos temas tratados, a par do amor que lhes é conferido, fazem de escritores como Selma Lagerlöf um dos nomes que mais contribuiu para a grandeza da Literatura.

Excerto:
“No fundo, nada interessa. O que restará? Quem pode dar alguma importância, a quem pode interessar a descrição do interior de uma casa? Só mesmo a ti, minha amiga Cristina Carvalho, que te apaixonaste por mim de uma maneira tão intensa e desinteressada, que te apaixonaste por uma pessoa que aí para os teus sítios de vida poucas pessoas conhecem. Pretendes alguma coisa, realmente, ao escrever, nesta forma de romance biográfico, a minha vida? Desejas que todos fiquem a conhecer-me e a gostar dos meus livros? Não penses nisso! Se quisessem conhecer-me já tinham tentado, já teriam lido, pelo menos “A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia”, esses livros que, a seguir a “A Saga de Gösta Berling”, me tornou famosa no mundo inteiro! Queres render-me homenagem? E quando viajas pela velha Suécia, pelo seu interior, quando vagueias pelas florestas ou quando admiras os lagos e as paisagens planas e ouves o uivo do lobo e o rosnar do urso? Achas que alguém se interessa por ti ou por mim quando, na margem de um lago qualquer, quase a tocar o céu iluminado pelo sol da meia-noite, te sentas e emudeces por tanta beleza? Queres vislumbrar a minha alma, eu sei, mas essa, nem essa já existe. Transformei-me. Morri há muito, mais exactamente em 1940, e saí daqui para sempre. Se é que – para sempre – quer dizer alguma coisa no todo da eternidade.
Continua, então, a descrever agora o interior da minha casa do modo mais terno e amável que conseguires. Imagina-me! Solta-me! Prende-me!” (pp. 153-154)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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