“Gosto tanto de comer que não quero morrer, porque depois nunca mais como.” (p. 241)
Dos Prémios Nobel de Literatura atribuídos na última década, Herta Müller (n. 1953) é um dos nomes que mais retenho e que mais me inquieta tendo em consideração a sua história de vida, mas também pelo valor literário das suas obras.
O Nobel de Literatura foi atribuído a Herta Müller em 2009 e recordo-me de procurar que livros
estariam publicados da escritora à data, tendo ainda conseguido encontrar “O Homem é um Grande Faisão sobre a Terra” (Cotovia). Escrita difícil, diferente daquilo que eu estava habituado, por vezes hermética tanto quanto cirúrgica nas imagens que projecta face a contextos sombrios, onde o drama e até o horror são os principais personagens.
Tive a oportunidade de conhecer a escritora em 2012, aquando da comemoração dos 50 anos do Goethe Institut de Lisboa que coincidiu com a publicação de “Já então a Raposa era o Caçador” (Dom Quixote) e recordo-me com frequência da sessão, no auditório, na medida em que me remetem para o seu universo literário, os temas que aborda, os horrores que procura expiar através da escrita, pelo que viveu na Roménia durante a ditadura, ou através dos personagens que (re)cria.
Recordo-me que face à questão que lhe foi colocada sobre se considera a possibilidade de escrever sobre a Roménia na actualidade, a escritora respondeu que não vivendo no país, haverá outros escritores que terão essa capacidade de o fazer melhor que ela. A outra questão que lhe foi endereçada tinha que ver com o facto de a escritora equacionar a possibilidade de escrever sobre outras temáticas para além da Roménia do período de Ceausescu. Herta Müller respondeu qualquer coisa como “Eu escrevo sobre aquilo que me agride e me magoa.”
Nunca mais me esqueci daquele momento e à medida que fui explorando as obras de Herta Müller fui percebendo a forma incisiva como aborda os vários assuntos. Detentora de uma capacidade de síntese, a escritora recorre de um modo geral a frases curtas, certeiras, que, muitas vezes ao longo de cada narrativa, seja qual for a obra, deixa o leitor incomodado, “agredindo-o” em certa medida, deixando-o mesmo vazio.
Creio que o objectivo de Herta Müller é mesmo esse, transferir a agressão e a mágoa para o leitor, permitindo que este reflicta sobre um assunto sério, fazendo também, em certa medida, o papel da historiografia no sentido de que é necessário preservar a memória de um país, mesmo quando se trata da memória do mal.
Parece-me sensato afirmar que autores como Herta Müller e o seu contributo para a literatura contemporânea anda de mãos dadas com a historiografia na medida em que através do registo literário, a narração de acontecimentos, circunstâncias e quotidianos promove o desenvolvimento de uma ideia ou mesmo fotografia, um filme, quiçá, em oposição ao registo de carácter científico que nos é facultado pela História.
“Tudo o que eu tenho trago comigo” (Dom Quixote, 2010) tem a particularidade de ser uma das obras de Herta Müller que não tem como pano de fundo a Roménia de Ceausescu. A narrativa começa em 1945, no final da 2ª Guerra Mundial, com o recrutamento de Leopold Auberg, um jovem de dezassete anos, que vai para um campo de trabalho forçado, na Rússia (Gulag), onde permanece durante cinco anos, lutando contra a fome.
A frase que seleccionei antes do início do presente texto poderia remeter, talvez, para outras temáticas, dado que se trata de uma frase que surge completamente desgarrada no contexto da narrativa, no entanto, essa é a frase salvífica de toda a obra, a única alegria, a de poder comer.
O anjo da fome acompanha Leopold Auberg ao longo de toda a obra, é um demónio tentador, para o bem e para o mal. Herta Müller é perspicaz como faz piadas em contextos marcados pelo horror, mas totalmente propositadas, porque são sempre certeiras. “As receitas culinárias são as piadas do anjo da fome.” (p. 113); “Uma vezes é o pato recheado à evangélica que ganha, outras, o recheado à católica.” (p. 112)
Mas o anjo da fome está sempre presente na vida dos prisioneiros e, mesmo aqueles que sobrevivem ao suplício, o anjo da fome acompanha-os durante toda a vida até morrerem. “Todos os dias o anjo da fome me devorava o juízo.” (p. 108); “A pior armadilha do anjo da fome é a armadilha da firmeza: ter fome e ter pão, mas não o comer. Ser mais duro contra si mesmo do que a terra enregelada. Todas as manhãs, o anjo da fome diz: Pensa em logo à noite.” (p. 117)
É esta ideia do guardar um pouco da parca dose diária de comida atribuída para ter um extra de comida para a noite que mina qualquer consciência. Só a ideia constitui em si mesma um contra-senso, mas, entre os prisioneiros, funcionava como uma tentativa de sobrevivência, enganando os estômagos sempre vazios.
É neste contexto que surge a “justiça do pão” quando algum dos reclusos rouba a dose extra de pão de outro recluso. “A questão do pão ficara resolvida, todos se comportavam como sempre. Nós não repreendemos o Karli Halmen pelo roubo, ele não nos recriminou pelo castigo. Sabia que o tinha merecido. O tribunal do pão não processa, castiga. A fronteira zero não reconhece artigos, não carece de leis. Ela é a lei, porque o anjo da fome também é um ladrão, que nos rouba o juízo. A justiça do pão não tem prólogo nem epílogo, é só presente. Totalmente transparente ou totalmente secreta. Seja como for, a justiça do pão é violenta, mas de forma diversa da violência dos que não têm fome. À justiça do pão não se pode vir com a moral corrente.” (p. 110)
“Tudo o que eu tenho trago comigo” de Herta Müller entra na esfera de romances que nos inquietam e mexem com as estruturas emocionais dos leitores. Este romance equipara-se a obras como “Fome” de Knut Hamsun (Cavalo de Ferro, 2008) e “O Sol dos Mortos” de Ivan Chmeliov (Relógio d’Água, 2015) em que o leitor já não é a mesma pessoa depois de passar pelo filme tenebroso da fome que, nas palavras de Herta Müller, “A fome é um objecto.” (p. 140)
Muito mais poderia ser dito a par da partilha de outros excertos desta obra sobre a fome nos campos de trabalhos forçados, na Rússia, mas termino com a ideia de fome de Leopold Auberg quando faz alusão às saudades de casa na sua Roménia natal. “Depois, a minha saudade de casa será somente a fome de um lugar onde um dia, outrora, não tive fome.” (p. 186)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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