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sexta-feira, 6 de junho de 2025

A Convidada escolhe: "Anónimos de Abril"

 

Anónimos de Abril” – Vol. 1

José Fialho Gouveia, Rogério Charraz, Joana Alegre, 2005

Este é o primeiro volume de um projecto que começou em Janeiro do ano passado com o espectáculo Anónimo de Abril em Lisboa, no Tivoli. O livro reúne histórias de doze mulheres e homens que lutaram pela liberdade, que estiveram entre aqueles muitos milhares que exultaram na rua com a revolução, mas de quem a História não fala.

Transcrevo a dedicatória a abrir o livro

À Celeste,

à Aurora,

ao Alberto,

à Herculana,

ao Luíz, à Albina,

à Branca,

ao Fernando,

ao João, ao José, ao Fernando,

ao Francisco

e a todos aqueles que, de forma mais ou menos anónima, ousaram lutar contra um regime que durante quarenta e oito anos intimidou, espancou, prendeu, torturou e matou.”

São histórias de vidas simples, de luta, contadas pelas próprias ou pelos seus filhos/as ou netos, quando os pais ou avós já não estão vivos, ou a partir de registos em jornais da época numa pesquisa que, segundo os seus autores, “tem ainda muito caminho para percorrer”. No final de cada uma das histórias uma canção que pode ser ouvida e seguida através de um QR Code.

É um tributo singelo, mas muito bonito a pessoas a quem devemos a enorme gratidão pelo seu gesto, pelo seu heroísmo, pelo seu exemplo.

Celeste Caeiro a quem ficamos a dever o simbolismo dos cravos associados à revolução de Abril e que ainda teve a felicidade de descer a Avenida da Liberdade nos 50 anos do 25 de Abril.

Aurora Rodrigues que aprendeu na sua experiência na prisão da ditadura que “O medo foi sempre a grande arma da repressão. Todavia, há alturas na vida em que não se pode recuar. Essa era a altura. Tinha de vencer o medo.” (p. 25)

O padre Alberto Neto assassinado em 1987, tendo o seu homicídio nunca sido esclarecido, “Tinha Deus por companheiro/ O Senhor como aliado/ E rezando foi guerreiro/ Contra a guerra e contra o Estado”. (p. 57)

O casal Herculana e Luíz Carvalho, os únicos familiares de um preso político no Tarrafal a visitarem o filho. Mas a sua acção e solidariedade tiveram um alcance muito para além do amor de pais, alargando-se a todos os presos que no Tarrafal estavam com o filho Guilherme.

Albina Fernandes, mulher dedicada ao ideal do partido, foi mãe de Daniela e de Rui Pato. O relato de sofrimento que foi a vida desta mulher e que é contado através dos filhos neste “Anónimos de Abril” é bem o retrato da brutalidade que foi a repressão perpetrada pela ditadura a quem se opunha ao regime. No documentário “Aqueles que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem)” da autoria de Marianela Valverde e Humberto Candeias, com testemunhos de familiares – mulheres e crianças – de presos políticos e militantes na clandestinidade, temos a perspectiva daqueles que se viram privados do contacto com os maridos e pais e dos traumas daí decorrentes.

Branca Carvalho, uma jovem que viveu praticamente um ano na clandestinidade e que, através de um relato em forma de carta ao filho, lhe explica as privações e imensas dificuldades que acarretava o facto de se abandonar tudo – família, amigos, trabalho – sem saber por quanto tempo, “As vidas que escolhêramos não tinham prazo de validade” (p. 101) Uma das questões que ela realça tem a ver com um aspecto que foi muito silenciado e que ela aborda: a marginalização ainda maior por que passavam as mulheres na clandestinidade, passando por mulheres do “casal”, numa posição de subalternidade - “sentia-me reduzida a tarefas domésticas, (,,,) “Cedo percebi que o Partido aproveitava mal as capacidades de trabalho das “suas” mulheres revolucionárias. Uma atitude algo machista disfarçada e dissimulada em razões de segurança, notaria, com amargura, muitos anos depois.” (p. 100)

Costuma-se dizer que o 25 de Abril foi uma revolução sem sangue, mas a verdade é que no final desse dia, quando Marcelo Caetano já se tinha rendido, a partir da sede da PIDE na António Maria Cardoso, uma rajada assassina acabou com a vida de 4 homens que se juntavam na alegria da vitória sobre a ditadura. São os Mortos de Abril como lhe chamam os autores do livro: Fernando Giesteira, José Barneto. João Arruda e Fernando Reis. “Só houve quatro mortos no 25 de Abril e a justiça foi branda com os elementos da PIDE. Ainda assim, o caminho para chegar à Liberdade interrompeu muitas vidas. Além dos que morreram às mãos da polícia política, convém não esquecer os mais de cem mil mortos na Guerra Colonial. O vermelho dos cravos de Abril também foi feito de sangue”. (p. 136)

O livro termina com um depoimento sobre Francisco de Sousa Mendes, um dos jovens militares que constituiu a coluna militar liderada por Salgueiro Maia que na madrugada do 25 de Abril partiu da Escola Prática de Cavalaria a caminho de Lisboa. Francisco é neto de Aristides de Sousa Mendes, que na sua qualidade de diplomata e desobedecendo às ordens de Salazar, salvou milhares de judeus ao conceder-lhes vistos que lhes permitiram fugir de uma morte certa.

Aguardemos pela continuação deste projecto de memória, agora que, como nunca antes, a memória da ditadura é tão importante para que não se caia de novo noutra.

5 de Maio de 2025 

Almerinda Bento 

terça-feira, 3 de junho de 2025

A Convidada escolhe: "Corpo Vegetal"

Corpo Vegetal, Julieta Monginho, 2024

 

Este é o quarto livro de Julieta Monginho que leio. Leio-o quando a sociedade portuguesa é sacudida pela notícia da violação de uma jovem por três “influencers” que filmaram o acto e o partilharam na internet, tendo a violação sido vista por milhares de pessoas, sem que alguém se tenha levantado para denunciar o abuso. Leio-o, quando recentemente, um conhecido sociólogo português acusado de assédio afirmou sentir-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado. Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.” A violação é o que está no centro de “Corpo Vegetal”, com as consequências devastadoras para a vida de uma mulher na sequência da violação.

Os verbos que dão nome aos seis capítulos do livro - Cair, Correr, Caminhar, Recuar, Voar, Dançar – acompanham Mimi, a personagem central, que podia ser qualquer uma das muitas mulheres que se confrontam com esse crime hediondo que atenta contra a sua autonomia e que tantas vezes fica impune, numa sociedade que inverte/subverte a situação, desculpabilizando os homens e olhando para as mulheres como culpadas. «Ela estava a pedi-las!» sintetiza uma visão discriminatória e culpabilizadora, tantas vezes assumida por quem detém a justiça, que deveria, ao invés, ser respeitadora da igualdade e dos direitos de todas as pessoas, independentemente do género.

Mimi é tradutora, tem 48 anos, é mãe de Bea e separada de Miguel, com quem mantém uma relação de amizade e cumplicidade que a separação não matou. Os pais, já idosos, são acompanhados por Isa, uma cuidadora brasileira e Rosalina, uma amiga artista que visita os pais de Mimi são as pessoas do círculo familiar da personagem central.

No polo oposto, Samson X Baxter, o autor americano de cinquenta e muitos anos, que Mimi só conhece do último livro que anda a traduzir e dos emails que trocam e videochamadas que fazem para tirar dúvidas. Até que há “esse maldito dia” do assalto sexual e com ele o pasmo, o horror, a paralisia, o desespero, a ambivalência entre denunciar ou ficar parada, adiar ou agir e enfrentar o poder. Do encontro em Lisboa, sobra a orquídea Juana que se “tornou prova de terror” (p.26) e a repulsa bem no fundo do seu “corpo rasgado” (p.10).

A narrativa coloca Mimi e coloca-nos a nós, leitores, perante várias perguntas. O que fazer? Denunciar? Como fazer uma denúncia? A quem se/me dirigir? Vale a pena avançar quando “já ninguém acredita em nada” (p.81) e já ninguém acredita no #metoo? A violência misógina das mensagens que o advogado de Samson X lhe envia é o espelho duma sociedade em que a impunidade dos agressores é total. De que lado está afinal a justiça, quando os direitos à privacidade e à autonomia são postos em causa, quando são pedidas à vítima provas de que não fez nada de mal (p. 120)? Nunca li “O Processo” de Kafka, mas em dada altura da leitura deste “Corpo Vegetal” recordei “O Castelo” e as barreiras intransponíveis que a burocracia cria para impedir o acesso à justiça.

Contudo, é no seio da família e das amigas, que Mimi ganha força para avançar e fazer ouvir a sua voz. O pai que “considera a insubmissão o único sentido da História, o único sentido da vida” (p.18) e que (se) apoia (n)a filha para escrever a sua “Teoria Geral da Insubmissão”. Isa que ouve e é quem ouve os seus segredos mais íntimos. A filha que pressiona para que a mãe se mexa e que é quem denuncia publicamente o violador. Miguel, o Próspero de “A Tempestade” que consegue mobilizar uma pequena Vila alentejana (a ilha) para a alegria do encontro com a cultura. Miguel, o que está lá sempre para a ouvir. Tão importante saber ouvir! Rosalina, que desenha árvores e que tem a arte da escuta dos outros. A mãe e as memórias da roda de mulheres que se juntavam para ouvir as novelas e daí até à ideia de se criar “uma comunidade de leitoras” (91). “Tontices, dizia ela. Mais lúcidas que os meus devaneios. A cadência da voz, a vivacidade, as mãos nodosas, falantes, sobrepostas à paisagem. Uma serenidade alheia aos meus últimos dias. Queriam mostrar-me outra possibilidade de viver.” (p. 93)

“Corpo Vegetal” vai ser objecto de uma conversa no próximo encontro de Leia Mulheres no Aljube. Como todos os livros que li de Julieta Monginho, também neste, cada frase tem muitas camadas. Lemos uma vez, voltamos atrás e descobrimos outros sentidos. É uma leitura que, embora nos puxe para avançar, nos obriga a alguma serenidade e vagar. Certamente que no encontro de leitoras no Museu do Aljube muito será dito para além deste pouco que aqui fica escrito neste simples texto. Um livro com muitas camadas focando um assunto central que exige resposta urgente e firme.

8 de Abril de 2025

Almerinda Bento

Nota: escrevi este texto a ouvir “From Gardens Where We Feel Secure” de Virginia Astley, que não conhecia e a que o livro faz referência na página 129.

Confusa, talvez, mas o corpo adquirira por mim uma espécie de lucidez que só a ele pertencia. O que me escapava, ele sabia de cor. Sabia-o há muito, muito tempo. Clamava por água e por luz, para sobreviver, como a orquídea. Clamava por repouso e palavras secretas para regressar à vida. Pedi para me porem a tocar Virginia Astley, From Gardens Where We Feel Secure. (…) Os sinos em repique, as teclas como gotas, pétalas, caules tenros ao vento. Esse o meu lugar.

Um caule ao vento, o meu corpo. Um corpo e a sua paisagem, algo com medo de sentir.”