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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A Convidada Escolhe: Bestiário de Kafka


Bestiário, Franz Kafka, 1912, 1915, 1917, 1918, 1920, 1921, 1922, 1923, 1924

Antes de mais, quero dizer que não tenho uma relação fácil com Kafka. Há tempos iniciei a leitura de “O Castelo” que se arrastou penosamente e que acabei por deixar a mais de meio, com um marcador que assinala o momento em que achei que já bastava! Eu sei que Kafka é considerado um dos mais importantes autores do século XIX e cito a informação da contracapa do exemplar da colecção “Autores Premiados pelo Tempo”, exactamente o volume 12 – “ O Castelo” – de “Grandes autores que nunca ganharam o Prémio Nobel reunidos numa colecção única e irreverente”: “Franz Kafka não ganhou o prémio Nobel por não ser um autor consagrado quando a morte o levou. Algumas das suas principais obras, como “O Processo”, “O Castelo” ou “América” só foram publicados postumamente pelo seu amigo Max Brod, que não respeitou o pedido de Kafka para que estas fossem destruídas.”

É muito raro não levar um livro até ao fim, mas revejo-me completamente senão em todos  “Os Direitos Inalienáveis do Leitor” de Daniel Pennac pelo menos no 3º direito “O Direito de não acabar um livro”! Há tanto para ler e independentemente da justeza e da pertinência dos temas de Kafka, a sua leitura deixou-me cansada, deprimida mesmo. Na minha opinião, ler Kafka, entrar no seu mundo é perceber que para ele o mundo lhe era insuportável e que a vida foi algo de muito penoso.

Mas como gosto de me questionar e fui/fomos como participantes do Clube de Leitura da Bertrand do Chiado convidados a aventurar-nos nos “Diários” e no “Bestiário” de Kafka, escolhi este último, uma colectânea de contos em que os animais são narradores ou personagens principais.

Se nestes contos há temas que me parecem evidentes, noutros as próprias personagens podem ser sujeitos de leituras muito diversas e de interpretações bem diferentes. Nada em Kafka é linear ou unívoco. Kafka é suficientemente ambíguo e perturbador para deixar em aberto as muitas acepções dos seus livros, das suas propostas, permitindo múltiplas leituras e interpretações das suas obras.

Em “A Transformação” ou “ A Metamorfose” face à transformação de Gregor Samsa num “monstruoso insecto”, a família considera que foi atingida por uma desgraça e rejeita-o, esconde-o, despreza-o, agride-o. Como ninguém o aceita como ele é, Samsa percebe que não tem outra coisa a fazer senão desaparecer e morre, o que constitui um alívio para os pais e irmã e a possibilidade de um futuro sorridente para eles, libertos daquele estorvo. A metáfora do insecto monstruoso é o medo e a não aceitação da diferença, que pode ser a doença, a deficiência, a deformidade física ou a escolha de um caminho fora da norma socialmente estabelecida.

Em “Relatório a uma Academia” é pedido a um macaco que faça um relatório da sua anterior vida, antes de ter sido capturado na Costa do Ouro. Difícil este relatório, na medida em que o macaco foi adestrado e já mal se lembra como era. Primeiro aprendeu a dar um aperto de mão e depois aprendeu a palavra. Para sobreviver ao cativeiro, consciente de que jamais poderia ansiar à liberdade, aquilo por que todos os humanos aspiram sem nunca conseguirem alcançar, o símio percebeu que precisava de uma “saída” e para tal só tinha de imitar os humanos. Embora sendo-lhe insuportável a domesticação, essa foi afinal a única saída possível. Creio estarmos aqui perante uma reflexão sobre os limites da liberdade e sobre os limites que a sociedade impõe a todos os humanos que julgando-se livres, não o são de facto. Este tema da liberdade está também presente na “Fábula Breve” em que o rato se apercebe de que o seu mundo se vai estreitando cada vez mais, acabando por ser devorado pelo gato, quando foge da ratoeira. E se em “Investigação de um Cão” o cão iniciou as suas investigações quando ainda era cachorro e agora já é velho, para saber “que erro decisivo e determinante cometeu” sem encontrar respostas, passa o tempo a fazer perguntas sobre a ciência, sobre a alimentação e sobre a experiência, para concluir que a liberdade é o mais importante. “A liberdade! Certamente a liberdade, tal como ela é possível hoje em dia, é uma miserável excrecência. Mas ainda assim é a liberdade, ainda assim uma posse.”

“A Toca” foi construída por um animal que não sabemos identificar. A toca é “um grande buraco que não conduz a parte nenhuma”. É um labirinto, com túneis, galerias e uma praça-forte onde armazena presas que vai capturando. Sente-se seguro, tem alimentos suficientes para viver, tem silêncio e paz. Aquele é o seu “castelo”. Mas aquela segurança não lhe basta e aventura-se para o exterior para observar e para se assegurar da sua inexpugnabilidade. Quando de volta ao seu “castelo” transportando mais uma presa, começa a ouvir um ruído, o que põe em dúvida todas as certezas de segurança e invencibilidade que o seu esconderijo cheio de comida lhe dava. Como muitas pessoas que armazenam fortunas e bens e se entrincheiram num falso casulo de segurança, mas que um dia, perto da velhice e da morte se confrontam com a certeza da morte e com a sua própria fragilidade. Um texto também ele labiríntico e que ficou inacabado, como aconteceu com muitos dos romances de Kafka.

Por fim, “Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos”. Josefina aparece como uma cantora, mas poderá representar um herói ou uma pessoa ilustre, alguém que num determinado período teve um papel agregador dum povo ou duma comunidade. Mesmo que esse povo, pouco dado à música, se sentisse atraído por ela. É um conto cheio de adversativas. Para mim, cheio de questões que ficaram em aberto.

Finalmente, quero valorizar o livro físico, com uma capa dura com desenhos e separadores muito interessantes.

22 de novembro de 18

Almerinda Bento

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