“Memória de uma Epifania” – Maria João Vaz, 2023
Conheci a Maria João Vaz numa sessão promovida pelo Bloco de Esquerda em Coimbra, no início de Março, no âmbito do II Fórum LGBTQI+. No final da sessão comprei o livro “Memória de uma Epifania” à autora, mas só agora o li, depois de ter lido “As Malditas” de Camila Sosa Villada.
Acho
que André Tecedeiro consegue, no prefácio, sintetizar muito do que
gostaria de aqui escrever sobre o livro: “É um livro claro,
generoso e honesto. Acima de tudo, é um livro necessário” (pág.
7). E mais à frente acrescenta: “De uma forma geral, as pessoas
sabem pouco sobre o que é ser trans, e o que julgam saber está
cheio de equívocos.” (pág. 8).
Muito
diferente de “As Malditas”, este livro surge do desejo de Maria
João Vaz escrever um texto para um espectáculo de teatro que
falasse da sua vida e da sua realidade, ou seja, daquilo que ela
conhece melhor, projecto esse que, entretanto, evoluiu para a
presente autobiografia. No fundo, Maria João Vaz sentiu necessidade
de partilhar a sua experiência de mulher trans numa sociedade ainda
muito alheada dessa realidade. A autora é exaustiva na partilha das
suas memórias desde a mais tenra idade: a vida com os pais, os
irmãos e irmã, o colégio execrável que frequentou durante sete
anos, as idas à Feira Popular, o fascínio da neve e das lojas de
brinquedos, mas também o desconforto desde sempre entre ela e as
outras pessoas, que a levava ao isolamento, buscando a solidão e o
silêncio. Nunca os pais revelaram capacidade nem sensibilidade para
ver que ela era diferente, nem os próprios médicos descortinaram a
origem dos ataques de pânico na escola, que para ela foi um lugar de
humilhação, de prepotência e de desrespeito pelos direitos das
crianças. Ao longo da vida e desde criança fez inúmeras viagens
com a família, as quais reconhece não conseguir desfrutar na
plenitude, mas que lhe deram uma base cultural e uma visão do mundo
que é muito patente em todo o livro. O gosto secreto de vestir
roupas femininas, a paixão e/ou identificação com outras mulheres
mais velhas gerava nela um sentimento de culpa, de que vivia uma vida
de fachada, de mentira. Para além do imenso amor pelas três filhas
da sua relação com uma mulher por quem se apaixonou, os animais, e
sobretudo os cães e cadelas que teve ao longo da vida, foram
certamente os maiores amores da sua vida. Com formação artística
na área do teatro, Maria João Vaz fez teatro, telenovelas, cinema,
dobragens de filmes de animação, foi música, tendo tocado trompete
no Hot Club e é escultora autodidacta . Foi uma mulher dos sete
instrumentos, agarrando tudo o que podia para viver e sobreviver, num
mundo que muitas vezes lhe virou as costas, a usou, foi falso e
hipócrita. Mas Maria João era mulher com um sentido profundo da
vida e uma busca incessante do equilíbrio e do direito a ser feliz.
Até
que se dá a epifania em 2018. Maria João é muito precisa e
descreve todo o seu processo de descoberta e de coming out em
relação à família e ao mundo. Após cinquenta anos de
condicionamento pessoal e social, descobre-se e encontra o seu
verdadeiro eu. Uma epifania é sempre algo de mágico, de
verdadeiramente novo, de maravilhoso, mas este processo não foi sem
custos e sofrimento, significou também muita solidão e confronto
com algumas pessoas que considerava amigas. Maria João Vaz partilha
connosco este seu processo e embora tenha ocorrido tardiamente na sua
vida, volto ao prefácio de André Tecedeiro, um homem trans, e
transcrevo: “Não há solidão comparável à de vivermos longe
de nós”. (pág. 7)
Num
tempo em que as questões de género e a comunidade trans estão sob
ataque mortal por parte da direita e extrema-direita, o conhecimento
da realidade e da diversidade deverão gerar empatia e a quebra de
preconceitos que se baseiam sobretudo na ignorância. Maria João Vaz
foi muitas vezes aos EUA, país que sempre lhe provocou enorme
atracção e até vontade de ser lugar para viver, mas, a certa
altura, fruto dos ventos conservadores que dali sopram, escreve que
hoje já tem pouca vontade de lá voltar. Compreende-se e lamenta-se
que o mundo esteja a virar-se para o conservadorismo mais abjecto.
À
autora e à coragem que reflecte ao longo deste livro autobiográfico,
o meu respeito e solidariedade. A luta continua!
15
de Julho de 2025
Almerinda
Bento