Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

sexta-feira, 28 de julho de 2023

A Convidada Escolhe: "Silêncio da Casa do Barulho"


 Silêncio na Casa do Barulho, Margarida Carpinteiro, 1986

Este é um daqueles livros “fininhos” que acabam às vezes por ficar espalmados no meio de outros mais volumosos e demasiado tempo esquecidos sem serem lidos. “Silêncio na Casa do Barulho” é o terceiro livro desta escritora, que é mais conhecida do público pelo seu trabalho como actriz de teatro e de televisão. Para mim, este é o primeiro livro que leio de Margarida Carpinteiro. 

Lisboa do início dos anos 50 do século passado, pela referência ao enterro do general Óscar Carmona. A Lisboa operária, um bairro de gente pobre, de gente que trabalha. Sente-se que as pessoas são tristes; são felizes quando sonham (Licas e Sanefa). Para os mais pobres há a “sopa do Sidónio” cujo nome resistiu e se manteve durante o tempo de Salazar. As fábricas que se construíram – a dos Tabacos e a das Armas – atraíram à cidade homens, que até então nunca tinham calçado sapatos. Cheira a pobreza. As mulheres têm muitos filhos, trabalham sem descanso, fazem a comida, abortam, as bofetadas e os sopapos são a linguagem com os filhos quando fazem alguma coisa mal feita. Os miúdos fazem gazeta na escola e sabem que a fábrica é o castigo certo para quem não consegue ter sucesso na escola. “Pensas que és fina como a de cá de baixo?” (pág. 38) E quando o marido da Adelina Padeira é preso depois da greve na fábrica dos Tabacos, “as crianças compreenderam que as pessoas grandes também apanham quando não obedecem” (pág. 57). 

Os casamentos e os funerais são os momentos sociais que quebram o cinzento dos dias, para além das histórias que se contam à soleira da porta nas noites quentes de Verão. A PIDE é uma ave negra poisada num carro preto. Como a PIDE, a Igreja também vigia e pune quando o rebanho se tresmalha. A farsa das eleições é montada e o cenário é feito de homens de escuro, tristes, que deitam “um papel branco e dobradinho dentro de uma caixa de madeira” (pág. 90). E “porque não estava lá nenhuma mulher?”… “ficaram a fazer o almoço.” (pág. 91). 

Um livro muito bem escrito, muito visual, embora muitas vezes a autora faça uso de uma técnica narrativa não explícita que implica uma maior atenção e reflexão por parte do/a leitora/a. Além disso, é muito marcado pela oralidade; faltam as vírgulas que são dispensáveis.

Tenho de verificar se não terei mais nenhum livro “delgadinho” de Margarida Carpinteiro escondido no meio de dois livros de lombada gorda e anafada.

18 de Julho de 2023 

Almerinda Bento


terça-feira, 25 de julho de 2023

A Convidada Escolhe: "Galileu em Pádua"

Galileu em Pádua, Alessandro De Angelis, 2021

Alessandro De Angelis é cientista, professor em Pádua e Lisboa e escreveu, entre outros, ensaios sobre a obra de Galileu. Este “Galileu em Pádua” conta “em forma romanceada os dezoito anos passados por Galileu em Pádua”, aqueles que Galileu considerou “os dezoito melhores anos da minha vida”. Na Premissa do livro, o autor revela que consultou vasta documentação e, sobretudo, correspondência que Galileu recebeu e que guardou, sendo o resultado um trabalho rigoroso do ponto de vista histórico, com personagens que existiram, embora o autor tenha feito “suposições – tanto quanto possível plausíveis – no que respeita à esfera das relações pessoais, das quais Galileu fala com parcimónia.” Com tradução de Bárbara Villalobos, este livro tem revisão científica de Carlos Fiolhais.

Galileu viera de Pisa onde foi leitor. Em Pádua onde chegou em 1592 com 28 anos, era já um homem com muita fama tendo sido escolhido para a cátedra de Matemática. A sua aula inaugural foi um sucesso e ao longo dos 18 anos na Universidade de Pádua, as suas aulas vão ser seguidas por alunos juristas e de outras disciplinas, impressionados pelo seu saber e pela capacidade de manter a atenção e o interesse. O ordenado era reduzido e Galileu precisava consolidar prestígio e reconhecimento, pois precisava de ganhar dinheiro para fazer face às dívidas contraídas pela família com o dote da sua irmã mais velha. 

Galileu viveu numa época em que fervilhava o pensamento novo, o espírito de descoberta e da procura de respostas a fenómenos ainda não explicados. A teoria de Ptolomeu de a Terra ser o centro do Universo tinha começado a ser posta em causa cinquenta anos antes pela teoria heliocêntrica de Copérnico que antevira a rotação da Terra e por outros homens da ciência como Kepler, mas estas ideias circulavam através da troca de correspondência, ainda sem serem publicadas ou divulgadas abertamente, pois punham em causa a doutrina da Igreja. Através do Tribunal do Santo Ofício, a Igreja exercia o seu poder pelo terror e pela influência que tinha sobre a chusma ignorante. Giordano Bruno tinha sido queimado vivo e o amigo frei Tommaso Campanella foi preso por heresia e só conseguiu escapar à morte porque se fez passar por louco. Galileu apaixonado pela geometria, pela mecânica, pela observação das marés e pela astronomia, observa, partilha ideias, questiona, constrói instrumentos como o “compasso geométrico e militar” e mais tarde o “cannocchiale” que vai aperfeiçoar cada vez mais com ajuda dos vidreiros venezianos, e lhe vai permitir observar a Lua, as estrelas, a Via Láctea, Saturno e os seus satélites. 

Num ambiente de rivalidade entre o doge da república veneziana, o papado de Roma e o ducado da Toscana, Galileu é denunciado ao Santo Ofício porque “em vez de santificar a fé, se dedica à libertinagem e à fornicação, e acrescente-se que pratica horóscopos e exercita a arte da divinação.” (pág. 160). No entanto, devido à intervenção de Venier, reitor da Universidade de Pádua, não foi dado seguimento para Roma à denúncia feita pelo amanuense de Galileu. O destaque que Galileu dá aos Médici e ao príncipe Cosme, ou seja, a Florença, através dos louvores e da dedicatória sobre as “Estrelas Mediceias” gera um afastamento de alguns dos seus grandes amigos e companheiros, que lamentam a ingratidão demonstrada por Galileu quando dedica a publicação desta tão importante descoberta a Florença e se esquece de Pádua e do doge de Veneza que sempre lhe deram todo o apoio ao longo daqueles 18 anos.

Foram anos de trabalho aturado na preparação das suas aulas, de acompanhamento dos seus alunos, de descobertas e teorização, de grandes amizades com Sagredo e Venier, de cumplicidades, de mulheres, de afamados vinhos italianos que terminaram repentinamente. Foi também em Pádua que teve duas filhas e um filho do seu relacionamento com uma jovem que conhecera em Veneza e com a qual nunca casou. Galileu prepara a sua despedida de Pádua, a que nunca mais voltará, regressando à sua Toscana natal. 

Este livro é só sobre “os dezoito melhores anos” dos 77 anos de vida de Galileu Galilei, conhecido pela defesa da teoria heliocêntrica até ao fim dos seus dias, nunca se retratando como a Inquisição queria.

16 de Julho de 2023

Almerinda Bento

sexta-feira, 21 de julho de 2023

"Amor Estragado" de Ana Bárbara Pedrosa

Não foi o primeiro livro de Ana Bárbara que li e sabia ao que ia. Escrita forte, histórias envolventes, marcantes. Não me enganei. Logo na primeira frase, um choque que nos previne que o narrador é alguém em quem não podemos confiar. E ficamos também a saber o que se vai passar mais adiante, quiçá no final.

A trama decorre em Vizela, em 1982, no seio de uma família típica portuguesa, um casal e quatro filhos. Os narradores são dois dos irmãos, o Manel e o Zé. Se ficamos com péssima impressão de um, do outro fica-se com a ideia de pessoa perfeita, a quem a vida magoa e que tem o motivo perfeito  para não se envolver no drama que vai acontecendo aos poucos, lentamente. Seremos nós aqueles que passam ao lado das coisas sem as ver porque não nos dizem diretamente respeito?

O alcoolismo, os maus tratos e a violência doméstica são alguns dos problemas que afligem aquela família. 

É impressionante como a autora consegue transmitir na perfeição os pensamentos do Manel, a deturpação da realidade a que ele se agarra para justificar os seus vícios e erros, a forma como se sente injustiçado e culpabiliza os que o rodeiam. 

E de que forma os laços de sangue nos impedem de ver quando um coração está estragado? Porque se o Manel é o autor material do que se passou naquela família, quem está ao seu lado, e nada fez, que responsabilidades possui?

É para ler, meninos, é para ler! Muito bom! Desejosa de ler o próximo...

Terminado em 3 de Julho de 2023

Estrelas: 6*

Sinopse

«Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.» Dois irmãos contam a dissolução de uma família. Manel casou com Ema, e foi até que a morte os separasse como enfim os separou – pelas mãos dele. Habituado ao álcool e incapaz de lidar com as frustrações, não era a ele que mãe e irmãos deviam o amor sem reservas? Zé, casado, agora com três filhos, não vê no sangue uma desculpa para a vida do irmão. Pela mão da violência, que é pedra de toque, assistimos a uma família cujos laços se desfazem. E à vida transformada noutra coisa. Com uma linguagem crua e destemida, que não raras vezes desarma o leitor, Amor Estragado é um romance sobre a família enquanto território a proteger, a traição da vida adulta face às certezas da infância, a inveja, o desgosto, a degradação que o vício impõe e o que custa perder um lugar de honra. E inevitavelmente sobre a culpa – do homem que mata e de quem não o impede. «Este livro é uma lufada de juventude, no meio da mesmice da nossa literatura contemporânea.» Itamar Vieira Junior «Uma escrita singular que impressiona pelo arrojo e versatilidade, pelo tom coloquial que nunca se perde.» José Riço Direitinho, Público «É coisa séria, sensual, bem escrita.» Francisco José Viegas, Correio da Manhã

Cris

quarta-feira, 19 de julho de 2023

A Convidada Escolhe:"Diário de um Médico no Combate à Pandemia"

Diário de um Médico no Combate à Pandemia, Gustavo Carona, 2021

Passados que são 3 anos que nos vimos confrontados com uma pandemia terrível, achei interessante ler este livro da autoria de um jovem médico que ficámos a conhecer da televisão e da rádio e cujo discurso saía um pouco do registo rotineiro. O livro tem um subtítulo – A missão mais difícil da minha vida – que atesta bem a gravidade do período que vivemos enquanto não havia medicamentos nem vacina, embora este médico intensivista revele na introdução que antes da pandemia já tinha feito 13 missões humanitárias em países onde ninguém quer ir, tratados como “esgotos da humanidade” (pág. 50), tal é a adversidade da vida daqueles povos. 

O livro tem dois tempos. O primeiro tem a ver com o período da 1ª vaga, 2º e 3º vagas e é um diário, como tantas pessoas fizeram nessa altura sobretudo no período em que estiveram confinadas, mas este é o diário de um médico a trabalhar em UCI, ou seja, alguém que esteve bem no olho do furacão; e depois um segundo tempo escrito no primeiro trimestre de 2021, sendo uma reflexão sobre os textos escritos ao longo da pandemia. 

Gosto de ler estes livros-testemunho, que nos põem em relação com situações muito específicas e que não correspondem ao comum das nossas vidas “normais” ou “padrão”, o que quer que isso seja! Neste caso, um jovem médico que totalmente se revela, expondo os seus sentimentos, os seus medos, as suas dores espirituais e físicas. Forte e frágil, crítico e abnegado, consegue com o seu exemplo dar-nos um retrato muito fiel da dureza e muitas vezes da solidão e incompreensão de quantos aguentaram o Serviço Nacional de Saúde, como a única âncora a que nos podíamos agarrar num período de incerteza, medo, confusão e cansaço extremos. 

O livro começa justamente com a intervenção que Gustavo Carona fez no dia 26 de Janeiro de 2020 numa sessão no palácio de Belém, no âmbito do Grupo de Reflexão sobre o Futuro de Portugal, quatro dias antes de a OMS ter declarado “o surto pelo coronavírus uma emergência de saúde pública de preocupação internacional, o mais alto nível de alarme”. Na sua intervenção de quatro minutos, frente a frente com o presidente da República, com o título “ A minha visão da saúde em Portugal”, referia a sua profissão como aquela “onde há mais burnout” (pág. 27) e referia “A perversão dos privados. Onde se deixa de ser doente e se passa a ser cliente.” (pág. 28). Poucos dias depois, a OMS anunciava que a doença causada pelo SARS-CoV2 seria designada por covid-19. Gustavo Carona, médico intensivista num hospital público do Norte, onde a pandemia teve um grande impacto logo na fase inicial da doença, estava longe de imaginar como os meses que se iam seguir iriam comprovar com toda a justeza aquilo que já se sentia entre os profissionais do SNS.

Ao lermos este diário relembramos o que foram aqueles meses, o que sabíamos através da comunicação social, como estava a evoluir a pandemia no nosso país e lá fora, quando ficámos todos vulneráveis a um vírus, que inicialmente desvalorizámos porque achávamos que era uma coisa lá longe na China, que não iria cá chegar. Na sua reflexão crítica sobre um ano de pandemia, Gustavo Carona escreve “As pessoas esquecem-se rápido” (pág. 268) e é bem verdade. Mas as fronteiras fecharam, as máscaras e o gel que inicialmente foram um negócio rapidamente passaram a ser rotinas, as charlatanices naturalistas e os falsos profetas pulularam, os negacionistas e os relativistas abundaram nas redes sociais e, ao mesmo tempo que se investia na ciência para a descoberta de um tratamento e uma vacina, nunca como então a ciência foi posta em causa. Sendo ele um de muitos e muitas que no SNS fizeram os impossíveis, a estranheza que era chegar ao hospital sem ninguém nas urgências, porque tudo estava focado no combate à covid, leva-o ao longo do livro a afligir-se pelas outras intervenções médicas que se adiaram, pelas cirurgias que não se fizeram e por todas as outras patologias que se “esqueceram”, ao mesmo tempo que pensava no desemprego, na saúde mental, e naqueles outros tantos países onde fizera missões humanitárias e que estavam completamente desprotegidos.). 

Ao mesmo tempo que relata casos que o marcaram para a vida nas suas missões no Sudão do Sul, no Iémen e noutros países, transmite-nos o que foi esta sua experiência em Portugal, no hospital, nos primeiros contactos com doentes covid, a primeira pessoa que teve alta na sua UCI, a ternura de uma colega enfermeira a falar com uma doente de 21 anos, os telefonemas para os familiares com boas ou más notícias, as videochamadas – “As primeiras de que me lembro sabiam a Euromilhões, porque correspondiam ao ponto em que o doente já estava melhor e capaz de interagir em frente ao telefone e comunicar com o seu familiar.” (pág. 77) – os números com que éramos diariamente bombardeados em contraponto às caras, aos nomes e às histórias de vida dos doentes que trataram. Ao longo do livro, Gustavo usa repetidamente o adjectivo “bonito”, para falar do SNS, do espírito de equipa, da abnegação dos colegas que puseram os outros à frente de si e das suas famílias, dos gestos de gratidão que receberam … Quero aqui lembrar uma entrada do diário de Novembro de 2020, com o título “Ricardo Quaresma”, em que lhe agradece por ter usado tão sabiamente a sua posição de grande desportista para ajudar o esforço que o SNS e os seus profissionais estavam a usar no combate à pandemia. E com o passar do tempo veio o cansaço das pessoas, o baixar a guarda, a 2ª vaga, a primeira pessoa vacinada e a extraordinária experiência da vacinação em massa e a terrível 3ª vaga que pôs Portugal no topo do ranking dos piores. 

Quem não se lembra da desumanidade que foi a morte de George Floyd? Ou o desastre imenso no porto de Beirute no Líbano, em Agosto de 2020 e o espectáculo da notícia, com consequências dramáticas para um país a necessitar de uma ajuda gigantesca. Mas passada a notícia e decorridos alguns dias, não mais se irá falar disso, porque já não é espectacular! Esta reflexão percorre todo o livro, feito por alguém que precisou de parar, de pedir ajuda psicológica, mesmo confessando que o fez tardiamente porque tinha vergonha, que sofreu burnout, dores físicas intensas que só passavam quando deitado…

Um livro em que o autor tem a humildade de confessar a sua ignorância e arrogância em certos momentos, mas em que se descobre um ser humano muito bonito, com uma dedicação inexcedível aos outros e uma paixão pela sua profissão e pelo SNS.

Longa vida, com saúde para Gustavo Carona.

6 de Julho de 2023 

Almerinda Bento



terça-feira, 18 de julho de 2023

"O Diário de Rutka" de Rutka Laskier

Já não sei como é que este livro veio cá parar a casa, mas o selo vermelho que possui na capa referindo que Rutka foi morta em Auschwitz com 14 anos e que este livro se trata do seu diário, revelado muitos anos depois, fez-me pegar nele. 

São poucas páginas de um diário, escritas por uma menina de Janeiro a Abril de 1943 que, como tantas outras, confiava nessas folhas os seus medos e angústias mas também as suas esperanças e desejos.

O início do livro é escrito pela sua meia irmã, Zahava, onde nos conta como é que só com 14 anos teve conhecimento da família do pai, falecida no campo de concentração. Tendo encontrado um álbum escondido com umas fotos de uma menina e um rapazinho mais novo, questionou o pai. Tinha precisamente 14 anos quando este lhe contou o que se passara com a sua primeira família. Vinte e oito anos mais tarde tomou conhecimento da existência de um diário que esteve escondido sessenta e dois anos! 

As primeiras páginas relatam-nos, um pouco, como é que este diário apareceu ao fim de mais de sessenta anos e como foi escondido por uma amiga, de como o pai foi o único sobrevivente de uma família de quatro pessoas. Algumas páginas não são já legíveis mas o relato não deixa de ser impressionante se imaginarmos o que depois se terá passado.

Rutka combinou com a amiga que, se algo acontecesse, ela deixaria o diário de baixo das tábuas soltas do soalho da casa onde vivia com a família no gueto. Foi assim que estas páginas foram salvas. Algumas fotos, aquelas enviadas para familiares no estrangeiro, ficaram para confirmar que Rutka era real, uma menina cheia de sonhos que não os pode concretizar. Como tantos!

Recomendo!

Terminado em 30 de Junho de 2023

Estrelas: não classificável

Sinopse

«Em 1943, Rutka, uma judia de 14 anos, foi levada para Auschwitz, onde morreu. Deixou um diário escondido sob as tábuas da escada, em casa, escrito em 1943. Uma amiga guardou-o, até recentemente o divulgar. Acaba de ser publicado em Portugal pela Sextante. Zahava (Laskier) a irmã de Rutka e contou ao P2 a história do diário e a sua descoberta de Rutka. Nascida em 1949, em Israel, Zahava tinha 14 anos quando soube dessa irmã perdida no Holocausto. »

Por Alexandra Lucas Coelho

« O diário foi publicado em Israel há sete meses, e gente de todo o mundo contacta-me. As crianças agora vão à Polónia e fazem peças na escola sobre o diário de Rutka.»

Zahava

Cris

segunda-feira, 17 de julho de 2023

"À Espera da Subida das Águas" de Maryse Condé

Babakar é médico e vive sozinho em Guadalupe. Sozinho com o fantasma da sua mãe, que lhe aparece nos seus sonhos e lhe comanda a vida, dando-lhe ordens e comentando as suas escolhas, os seus medos, as suas incertezas. A ligação entre os dois, em vida, era muito forte e, depois da sua morte, também. Do nada, por uma coincidência da vida, que o próprio considera feliz, uma menina cai-lhe nos braços e passa a fazer parte da sua vida.

Aos poucos, a sua vida vai sendo preenchida por alguns amigos cujas vidas a narrativa vai desvendando aos leitores, aos poucos, com as suas histórias de abuso, dor, mistério. Mal comparando, fez-me lembrar uma viagem num meio de transporte em que vão entrando viajantes com as suas bagagens que mais não são que as suas vivências, que se vão somar às dos que já lá se encontram. 

A viagem neste livro decorre maioritariamente no Haiti, para onde Babakar decide levar a menina, cuja ascendência é de lá, mas como pano de fundo está a História desse país liberto do jugo colonial mas ainda cheio de danos que o colonialismo provocou, cheio de ódio, violência, corrupção, racismo. Mas onde a amizade e o amor fazem de Babakar um privilegiado também.

Geograficamente recorri ao mapa para que as distâncias/países referidos se façam perto dado que cada personagem tem origens diferentes e, quando assim é, gosto de me situar visualmente. Foi sobretudo essa dificuldade que senti no decorrer desta leitura.

Terminado em 29 de Junho de 2023

Estrelas: 4*

SinopseCris

Uma história sobre a reconstrução do mundo.

Babakar Traoré estudou no Canadá, é médico e vive sozinho em Guadalupe, onde estão as origens da sua família materna – mas também a sua solidão, os seus fantasmas, bem como a recordação de uma infância africana, de uma mãe de olhos azuis que vem visitá-lo em sonhos, de um antigo amor, Azélia, também desaparecida, e de outras ilusões juvenis antes do seu exílio e da idade adulta. Quando, a meio de uma noite de temporal, é chamado para assistir um parto, Babakar não sabe que a sua vida está prestes a mudar por causa dessa criança que vai nascer; a mãe, Reinette, uma refugiada haitiana, morre ao dar à luz – e a pequena Anaïs fica a seu cargo. O desejo de Reinette era que a filha fosse criada no Haiti, e Babakar muda-se para a ilha, à procura de quem pudesse ensinar a Anaïs de onde ela vem. Através da história dessa dupla improvável, Babakar e Anaïs, dos amigos Movar e Fouad, que os acompanham, e dos que foram encontrando naquela ilha martirizada por violência, governos corruptos e gangues rebeldes, mas tão bela e fascinante, irá reconstruir-se um novo mapa ligado pelos danos do colonialismo, bem como as raízes do amor, da amizade, da comunhão com os outros – e o lugar de cada um no Mundo.

Cris

quinta-feira, 13 de julho de 2023

"A Cura da Cicuta" de Joanne Burn

Este livro envolveu-me de imediato. Gosto tanto quando isso acontece! A minha atenção é algo irrequieta e muitas vezes chego ao fim de uma página e tenho de voltar ao início porque andei a divagar, muito para lá das páginas e da história do livro que tenho em mãos... Isto acontece-me, sobretudo, nas primeiras páginas.

Por isso, quando um livro me agarra logo, fico muito satisfeita. É isso que procuro nas páginas que leio: outros mundos, outras vidas, aprender com elas. Uma das coisas a que recorri com frequência durante a leitura e que ajuda muito o leitor a situar-se, é uma página inicial com as personagens e suas ligações familiares. Fui acrescentando a lápis alguns pormenores que me pareceram relevantes e que me ajudaram a entrar mais rapidamente neste mundo "mágico" destas três amigas com uma forte ligação com a natureza.

Inglaterra, Eyam, uma pequena aldeia, 1665. A Peste Negra ganha cada vez mais espaço e os rumores de que em Londres a situação está caótica chegam a esta aldeia que ainda mantém a esperança de ser poupada. 

Isabel, Elizabeth e Mae. Laços de amizade unem estas mulheres e partilham segredos. Isabel é parteira e não pode ser mais do que isso, dado que se competir com o boticário local, pai de Mae, na feitura de mezinhas pode bem ser considerada bruxa e tratada como tal. Elizabeth é uma mulher de posses e é na sua propriedade que se reunem as condições para a realização dos remédios que fazem. Mae tem apenas 14 anos, vive sozinha com o pai e, também ela esconde alguns segredos. A morte da mãe, amiga de Isabel e Elizabeth,  e da sua irmã possui contornos estranhos de que desconfia mas em que não quer acreditar. Em segredo, reunem-se para fazer mezinhas e remédios e aprender umas com as outras. Mae, às escondidas do pai, aprende com os seus livros as propriedades das plantas e como transformá-las.

Um mundo que referi como "mágico" mas que de magia só tem a verdadeira amizade que acontece quando três mulheres lutam pelos seus sonhos, já que o papel das mulheres, nessa época, estava muito restrito a certas profissões! Gostei verdadeiramente deste mundo, que nos é contado por um narrador especial de quem não revelo a identidade porque descobri-la foi uma das surpresas boas que tive nesta leitura.

De quando em quando, umas páginas do diário de Wulfric, o boticário e pai de Mae, escrito vinte anos antes, surgem para adensar o mistério. Bem escrito e muito cativante, este livro foi uma maravilhosa descoberta que mistura factos reais com ficção.

Recomendo muito!

Terminado em 21 Junho 2023

Estrelas: 6*

Sinopse

Há venenos que não podem ser contidos para sempre… e segredos que não podem permanecer guardados.

O ano é o de 1665, e as mulheres da vila de Eyam guardam muitos segredos… Isabel, a parteira, trilha um caminho perigoso, com as suas ervas e preparados. Há na aldeia homens que falam em bruxaria, e Isabel tem um passado a esconder. É também por isso que não partilha com ninguém os seus receios a propósito de Wulfric, o devoto e enclausurado boticário da povoação.

Mae, a filha mais nova de Wulfric, teme a fúria do pai, se este descobrir o que também ela esconde dele. Os sentimentos que nutre por Rafe, por exemplo, jovem que está à guarda de Isabel, ou o facto de que estuda, à luz da vela, pelos livros proibidos do pai. Mas outros mais guardam segredos, e mais sombrios do que qualquer uma delas possa imaginar.

Quando Mae faz uma descoberta aterradora, Isabel é a única pessoa que a vai poder ajudar, mas ajudar Mae significará colocar ambas em grave perigo. E está a caminho, vinda de Londres, outra ameaça, um manto que ameaça cobri-los a todos…

Cris

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Resultado do Passatempo "Toca a comentar!" - Mês de Junho

Anunciamos o vencedor deste passatempo referente ao mês de Junho.

Este é o link para o post onde se encontra anunciado o passatempo.

Assim, através do Random.Org, de todos os comentários efectuados nesse mês, foi seleccionada uma vencedora! Foi ela:

Cidália Ferreira

Parabéns! Terás que comentar este post e enviar um email para otempoentreosmeuslivros@gmail.com até ao próximo dia 25, com os teus dados e escolher um de entre estes dois livros:


Cris


segunda-feira, 3 de julho de 2023

A Convidada Escolhe: "Como um marinheiro eu partirei"


“Como um Marinheiro eu Partirei – Uma Viagem com Jacques
Brel”, Nuno Costa Santos, 2023 

Uma verdadeira revelação este livro. Chegada à Horta, na ilha do Faial, a caminho da marina, encontrei na montra da loja que fica ao lado do Café Sport Peter este livro, acabado de ser publicado. Não só porque era o primeiro dia de um passeio que iria incluir cinco ilhas do arquipélago dos Açores, mas porque sou da geração que ouviu e conhecia muitas das canções de Jacques Brel, aquele livro era irresistível. Comecei a lê-lo logo no primeiro dia da viagem e terminei-o dias depois já na ilha das Flores e com a intenção de o reler no continente a ouvir os poemas de Brel com alguns versos traduzidos ao longo da narrativa.

Há uma grande ternura na escrita desta história de um homem com um talento gigante, que um dia decidiu cortar radicalmente com uma vida pública em que os holofotes e a fama estavam no auge. Tal como uma relação que termina e em que as pessoas se afastam, a sua relação de amor com o público terminou, tendo o palco e os aplausos sido substituídos pelo mar. Brel foi “um homem de instintos e decisões inequívocas” (pág.33), alguém que não aceitava sentimentos pela metade, que “viveu do modo que quis, como quis, com quem quis.” (pág.143). Uma personagem complexa, impossível de ser caracterizada ou catalogada.

Esta “viagem com Jacques Brel”, como surge no título do livro de Nuno Costa Santos, é uma biografia de Brel, em que as vidas do biografado e do biógrafo se entrelaçam, se cruzam, tanto mais que “o ímpeto da comparação é inevitável” (pág.25). O narrador, logo no início da narrativa mostra a sua intenção de querer partir como um marinheiro, acompanhar Brel na sua viagem por mar até às ilhas Marquesas, onde se encontra sepultado Paul Gauguin. Estabelece diálogos e semelhanças com o poeta, fala das suas mágoas por ser um pai distante e ausente, mostra o desconforto quando vivendo no continente se sentia como um emigrante.

A estrutura desta “viagem” segue um roteiro com capítulos curtos em que as vidas de Brel e do narrador vão surgindo. Os títulos dos capítulos são como que o guião dessa viagem com algumas personagens decisivas. Sérgio Paixão, açoriano e autor do blogue “O Canto de Brel” é decisivo na construção desta biografia, pelo profundo conhecimento da obra de Brel e da passagem do poeta pela ilha do Faial no ano de 1974. De entre tantas mulheres e homens que passaram pela vida de Brel, uma referência especial a Jojo, o maior amigo e confidente de Brel, “o homem da sua vida”(págAlmerinda Bento. 93) e Delphine, a prostituta que “desconhecia que Jacques era o artista que actuava para plateias cheias de fãs à procura nas suas canções de um aconchego para as suas mazelas sentimentais.” (pág.62). O dr. Decq Mota, uma das amizades desinteressadas mas verdadeiras, que o tratou no curto período em que Brel passou pela ilha. Dinarte Branco, o actor que aceitou sem hesitação o convite para fazer o papel de Brel numa apresentação no Teatro Micaelense, o pescador Genuíno Madruga e o mestre na arte de scrimshaw Othan Rosa da Silveira.

O último capítulo “Estrelas Inacessíveis” é uma reflexão sobre o valor da amizade. Aquelas amizades que ocorreram num período tão curto da vida de Brel nos poucos dias em que ele esteve na ilha do Faial, foram momentos, acontecimentos, não planeados, desinteressados, afinal o que de melhor há num mundo tantas vezes dominado pela superficialidade das relações movidas por interesses não genuínos. 

Um livro maravilhoso que irei sempre associar a Brel, à energia das suas canções e à maravilhosa viagem que fiz ao arquipélago açoriano. Depois de ter visitado a ilha do Faial e a região onde ocorreu a erupção do vulcão dos Capelinhos, torna-se inesquecível o diálogo imaginário entre os Capelinhos e Brel, dois vulcões em repouso. 

24 de Junho de 2023 

Almerinda Bento