“Na
Floresta”
Edna O’Brien
(Cavalo de Ferro)
“O
que perverterá uma criança… o que fará com que uma criança
deixe de ser uma criança?”
(p. 191)
Baseado
em acontecimentos que chocaram a Irlanda nos anos 90, Edna O’Brien
(n. 1930) revisita “Na Floresta” (2002) toda uma história de
violência, agressão, demência e crueldade que nos leva a
questionar o papel dos indivíduos como parte integrante da sociedade
e que responsabilidade têm na criação de psicopatas que, sendo
rejeitados, projectam a imagem de tudo quanto é mau naquilo que
poderíamos indicar como ser social.
“Na
Floresta” é uma narrativa que procura encontrar o ponto de
clivagem entre a perda da inocência e a criação do monstro, e de
que modo a família, a sociedade e a Igreja contribuem para a
inclusão e exclusão de determinados elementos do tecido social,
reflectindo sobre culpa e responsabilidade de toda a sociedade em
todo o processo.
Considerada
como uma das escritoras mais reconhecidas de língua inglesa, Edna
O’Brien volta a meter o dedo na ferida naquilo que tantas vezes nos
desculpamos quando nos referimos à sociedade no geral, eliminando o
papel e responsabilidade dos indivíduos e também das instituições
que falham nos seus objectivos e pretensões.
Conhecendo
por experiência própria o que é ser ostracizada ao ponto de a
venda dos seus livros ter sido proibida por não poupar a Igreja
Católica e a mentalidade conservadora dos irlandeses, assim como os
preconceitos e certas tradições que tornam as comunidades mais
vulneráveis ao poder e à manipulação de terceiros, Edna O’Brien
tece um romance baseado nos assassinatos de uma mãe de 29 anos e o
seu filho de três anos e ainda um padre que foram mortos à
queima-roupa por Brendan O’Donnell, em 1994, tendo sido condenado a
prisão perpétua em 1996 tendo sido encontrado morto em 1997 no
Central Mental Hospital, em Dublin.
Esta
é a premissa do romance em que Mich O’Kane (nome substituto de
Brendan O’Donnell) regressa de Inglaterra após ter cumprido uma
pena de prisão. Numa pequena localidade de fortes tradições
católicas, muito conservadora e onde todos se conhecem e onde todos
conhecem a vida de todos em que o diz-que-diz assume uma grande
preponderância no dia-a-dia, aquilo que parecia ser um boato
torna-se mesmo real: Mich O’Kane regressou e o pânico instala-se.
O
primeiro parágrafo do segundo capítulo remete-nos de imediato para
a natureza selvagem e de certa forma errática de Mich. “O
Kinderschreck. Foi o que o alemão lhe chamou quando roubou a arma.
Antes disso foi Michen, nome inspirado num santo, e depois Mich, o
filho dilecto da mãe, e depois Rapaz, quando esteve naquele lugar, e
depois Filho, quando ajudava o padre Damien a tratar das flores e dos
cálices na sacristia, e depois K, abreviatura de O’Kane, quando os
seus tempos de rufia começaram.” (p. 11)
Se
o comportamento instável de Mich se prevê complexo numa narrativa
que ainda mal inicia, o parágrafo seguinte deixa de imediato o
leitor num estado de perplexidade ficando na expectativa sobre o que
se avizinha. “Fora uma criança de dez anos e onze e doze anos, e
depois deixara de ser criança porque havia aprendido as coisas
cruéis que lhe ensinavam nos lugares com nomes de santos.” (p. 11)
Edna
O’Brien sabe exactamente quais os alvos a abater e fazendo um
exercício de retrospectiva, desde “Raparigas da Província”
(1960) ao mais recente “Pequenas Cadeira Vermelhas” (2015),
passando por este “Na Floresta” (2002) – fazendo unicamente
referência aos romances da escritora publicados em língua
portuguesa -, as questões nevrálgicas perpetuam-se no tempo. A
Irlanda acompanhou a modernidade, mas é lícito questionarmos como é
possível um país se modernizar quando a mentalidade está ainda tão
dependente dos dogmas, tradições e preconceitos da Igreja Católica.
As
acusações perpetradas à Igreja Católica ao longo das últimas
décadas, sobretudo no que concerne aos inúmeros casos de pedofilia
que foram revelados um pouco por todo o mundo também têm eco aqui
em “Na Floresta” ainda que de forma ténue, mais não seja para
percebermos que aquilo em que Mich O’Kane se tornou também passou
pela sua vivência num orfanato católico e naquilo que não era
suposto acontecer ter acontecido.
Se por um lado Edna O’Brien
não poupa críticas à Igreja Católica, é também o capítulo
sobre a absolvição que juntou Mich O’Kane e o padre Christopher
que surpreende e que devolve à Igreja o seu papel de integração de
todos na sociedade que a qualquer momento tende a ruir e a
desagregar-se. É uma passagem que nos leva a olhar para dentro e
percebermos a nossa imensa culpa que tentamos limpar a todo o custo,
desculpando-nos com a ideia apaziguadora de “sociedade”. É um
momento, talvez o mais decisivo que nos leva a reflectir se a
sociedade não é tão culpada quanto os monstros que cria e até que
ponto Mich O’Kane, neste caso em concreto, é tão culpado pelos
seus actos como vítima de uma sociedade que o produziu e ostracizou.
“Entendo
que devo dizer-vos uma coisa – diz o padre pondo-se de pé,
erguendo as mãos, impotente. – No dia em que fui ordenado padre,
éramos cinco ao todo e foi-nos dito que déssemos as mãos e foi o
que fizemos. Demos as mãos e em torno delas colocaram um pano
branco, como uma ligadura, e foi-nos dito que o levássemos e o
guardássemos e o déssemos a alguém muito especial quando
julgássemos necessário… a minha mãe faleceu no Outono passado e
pus-lhe esse pano nas mãos quando jazia no caixão… Se o tivesse
agora pô-lo-ia nas mãos daquele rapaz, mas não o tenho, não o
tenho… e estou a contar-vos isto na única linguagem que me é
permitida.
(…)
Depois
irrompe uma gargalhada, sonora, seguida de um latido, e todos voltam
a cabeça na direcção da porta.
(…)
-
Ele está a rir há dezassete minutos – diz o inspector segurando o
relógio.
-
Dezoito, pelas minhas contas.
-
Dezoito minutos de riso animalesco.
-
Bizarro.
O
riso prolongou-se e havia nele um quê de terrível, um quê de
fantasmagórico, como se anunciasse não ter fim e prometesse ecoar
para sempre nos ouvidos deles, avisando que, mesmo depois de findar,
perduraria como um espírito naqueles corredores, a praga de O’Kane.”
(pp. 191-192)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Gostava de ler este. É uma autora muito reputada e contestada, pena que esteja doente. A literatura precisa de gente incómoda.Há uns tempos li um extenso artigo sobre a ida dela à Nigéria, a propósito de um livro chamado Girl. É rigorosa e eu aprecio isso.
ResponderEliminarFiquei curiosa com as tuas palavras sobre a vida da autora!
Eliminar