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terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A Escolha do Jorge: "O Senhor"


O Senhor 
de Miljenko Jergović
“Antigamente, ao longo de Sepetarovac, carreteiros levavam às costas canastras cheias de mercadorias, até aos armazéns de Bjelava e às lojas de Pothrastovi. Durante séculos subiam por essa rua infinitamente íngreme para, mesmo lá no alto, serem acolhidos por uma bica debaixo do jorro da qual encontravam o refrigério e a esperança de que um dia esse monte cedesse debaixo do peso do seu sofrimento. A bica foi, em tempos remotos, já ninguém se recorda quando, construída por um rei para fazer bem às pessoas e para que isso lhe fosse reconhecido no outro mundo. A sua água nunca secou, nem no tempo em que os carreteiros foram substituídos por camiões, e em que ficou apenas o nome da rua para evocar as suas canastras.
O Senhor Ivo tem vivido quase toda a sua vida perto do fundo da Sepetarovac, mas tanto para si próprio como para todos os demais continuou a ser o Senhor de Dubrovnik. As rosas do seu jardim eram mais robustas do que as outras, o caminho de pedra sempre limpo e a sua saudação 
exactamente tão cordial como devia sê-lo, nem íntima demais como a do povo da Baixa, nem distante como a dos senhores cidadãos novos-ricos.
No início do Outono de 1991, depois do ataque dos tchetniks a Dubrovnik, o Senhor Ivo comprou cinco galinhas e um galo, arrancou as rosas e cavou a terra e ainda encontrou no jardim um antigo poço enterrado. Limpou-o, pôs-lhe cascalho e rodeou-o de finas pedras brancas. Os vizinhos sabiam o que tinha na ideia, mas mesmo assim custava-lhes meter na cabeça que alguém pudesse ter pensamentos tão negros e que um senhor se pudesse transformar num trabalhador enlameado e num camponês disposto a aguentar o fedor das galinhas.
- Deixa lá, se acontecer algo, Deus não o permita, eu estou preparado, e se não acontecer, diverti-me muito. Há trinta anos que vivo entre rosas, e não vá por acaso morrer sem sentir em que é que elas diferem das galinhas.
O início da guerra encontrou-o com uma excelente colheita de tomate e alface e os primeiros cortes de água com a límpida e fresca água do poço. Com o passar do tempo, o alegre cacarejo parecia à vizinhança, o canto das aves do paraíso, era o som que do mundo das trevas te guia à luz do dia.
- Um senhor é sempre um senhor, e canalha é canalha, e não há nada a fazer. Ontem víamo-lo entre rosas e pensávamos - «olha, chegou um senhor de Dubrovnik», e hoje, lá está, em caca de galinhas, e continua o mesmo senhor.
Mas quando uma vez a água da torneira não veio durante dez dias e mesmo a bica do alto de Sepetarovac secou, os vizinhos, com baldes nas mãos, pela primeira vez bateram na janela de Ivo. Ele tirou-lhes água, e eles, claro, fizeram correr a boa nova pelo bairro. No dia seguinte já se juntaram diante da casa de Ivo umas cinquenta pessoas, ele atendeu-as, mas vieram mais cinquenta. Para não enturvar o poço ninguém podia tirar a água sozinho.
Depois de uns quantos dias, o Senhor Ivo pendurou um aviso na porta: «Estimados vizinhos, o horário do poço é das 10 às 12 e das 16 às 18. Fora dessas horas não tenho possibilidade de vos atender.» Diante da casa estendeu-se uma fila longa e excepcionalmente bem ordenada, Ivo deixava entrar três aguadeiros de cada vez, ninguém protestava nem sequer falava um pouco mais alto. As normas de comportamento tinham de ser respeitadas como na mesquita ou na igreja. Os incautos eram avisados, quer por Ivo, quer pelas pessoas da fila, de que tinham vindo à água e não ao café, e que se deviam comportar em conformidade.
Nos dias em que havia grandes bombardeamentos ou quando soprava o siroco, o Senhor ficava um pouco nervoso, mas as pessoas tentavam pô-lo bem-humorado com olhares, perguntas de cortesia e pequenos gestos de atenção. Às vezes conseguiam-no, mas outras Ivo comportava-se como um nobre altivo; choviam observações irónicas, repreensões sem motivo, até mesmo insultos. Mas jamais negou a água a alguém.
Quando os ventos do sul, e também os tchetniks, se acalmavam, o Senhor voltava a ser o de sempre; emanava dignidade quer quando estava assim dobrado sobre o poço, quer quando o suor lhe escorria pela cara, quer quando lhe dava a fraqueza e tinha de se sentar por uns cinco minutos.
Nas alturas em que o abastecimento público de água voltava a funcionar o Senhor Ivo podia suspirar de alívio. Nesses dias ninguém o mencionava, nem lhe batia à porta. Era preciso deixar o homem descansar um pouco da gente. E não esquecer que voltarias a ele, feliz por teres nascido debaixo de uma estrela boa e por não teres de caminhar até à bica municipal junto à Cervejaria para onde os tchekniks de quando em quando mandavam granadas.
Na véspera de Natal, o Senhor Ivo informou o povo de que, no dia seguinte, a título excepcional, não iria trabalhar porque, para ele, era um dia de festa, mas que em troca permaneceria junto do poço na véspera. No dia santo os aguadeiros trouxeram presentes. Pitas, baklavas, jarros de quefir feito com leite em pó, pequenos embrulhinhos de café moído, um jovem até conseguiu um maço de Croatia com filtro, o que comoveu particularmente Ivo.
O primeiro dia depois do Natal foi como todos os outros. De um lado, uma longa fila de homens, mulheres e crianças com baldes, e do outro, Ivo com os olhos pregados no fundo do poço. Para um bairro de Sarajevo, na sua limpidez estava recolhida toda a bondade deste mundo. O Senhor encheria todos os baldes e os fregueses teriam depois de subir a encosta com eles.
- Todos os dias, quando acarreto a água, lembro-me de Cristo e do seu Calvário. Penso se é possível que o Calvário fosse sempre a subir, ou se seria um pouco a subir, e um pouco a descer – dizia a minha mãe a uma muçulmana, carregando-lhe às costas mais essa preocupação.”
Miljenko Jergović in O Senhor in Marlboro Sarajevo
Cavalo de Ferro
1ª edição, 2004
pp. 35-38
Texto escolhido por Jorge Navarro






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