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sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Escolha do Jorge: “Jó – Romance de um homem simples”



Jó – Romance de um homem simples”
Joseph Roth

(Ulisseia)


“Não te admires, não fiquei louco. Fiquei velho, assisti à queda de vários mundos, finalmente tornei-me sábio. Durante todo o tempo fui um professor estúpido. Agora sei o que digo.” 
(pp. 160-161)

Publicado em 1930, “Jó – Romance de um homem simples” (“Hiob” no original), é considerada obra-prima por excelência de Joseph Roth (1894-1939), um dos últimos escritores herdeiros da tradição judaica e um dos nomes mais representativos da literatura do século XX.

Natural da Galícia, Joseph Roth cria um romance que é um reflexo da sua própria vida, sobretudo no que respeita à ideia de exílio, uma constante na história dos judeus, assente na história de Mendel Singer que em tudo se assemelha à vida de Jó do Velho Testamento, que vai sofrer os pecados e as dores do mundo até ficar à beira de perder a fé em Deus.

Com uma escrita sem igual, Joseph Roth cativa o leitor desde as primeiras páginas das suas obras, falando-lhe ao coração e, no caso específico de “Jó”, é um romance que interfere com os nossos sentidos, o nosso intelecto, tratando-se de um romance cuja natureza e sentido pertence, também ele, a um universo relegado para a História, na sequência da 2ª Guerra Mundial com o holocausto e a fuga de milhões de judeus que se espalharam pelo resto do mundo.

A primeira parte do romance é passada na remota localidade de Zuchnow integrada no Império Russo, antes da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), em que Mendel Singer é-nos apresentado como um judeu convicto, temente a Deus, seguindo todos os preceitos da religião com muito rigor, casado com Deborah com quem teve quatro filhos: Jonas, Schemarjah, Mirjam e Menuchim, este último que nasceu deficiente.

No meio da pobreza que não só reflecte a vida naquela região do Império Russo, dá-nos a ideia das muitas dificuldades vividas pelos judeus na Europa de Leste, tema já desenvolvido pelo autor, na obra “Judeus Errantes” (1927), em comparação com as melhores condições de vida dos judeus no Ocidente.

Mendel Singer herda a pequena casa do seu pai e que já tinha sido do seu avô, tornando-se professor à semelhança daqueles, como que uma garantia de ordem estabelecida, tanto do ponto de vista económico, social e cultural.

Os anos passam e o filho Jonas torna-se cossaco, um militar ao serviço do Czar, a contragosto da família e dos preceitos judaicos, ao contrário de Schemarjah que se torna desertor, emigrando para os Estados Unidos, tornando-se um empresário de sucesso. Mendel Singer vive um sério dilema entre permanecer em Zuchnow, onde nada acontece, mas onde pode dar apoio ao filho Menuchim que tarda em falar e em locomover-se ou partir para Nova Iorque, na sequência da chamada de Schemarjah (Sam), para que a sua filha Mirjam não se perca por ser tão dada aos prazeres do corpo junto dos jovens cossacos que deambulam por Zuchnow.

A família parte então rumo a Nova Iorque, à terra da esperança e das oportunidades, para a então concretização do sonho americano. A nova língua, o dinheiro, a alimentação, os novos hábitos, tudo é novo para a família Singer que passa a viver num bairro onde a maioria dos seus habitantes são também judeus. Joseph Roth dá-nos aqui, na segunda parte do romance, um espelho daquilo que é a vida dos judeus em Nova Iorque no início do século XX, o seu quotidiano, os laços de solidariedade e o compromisso com Deus, não esquecendo a forte ligação às terras de origem. Neste ponto, em jeito de parêntesis, Joseph Roth aborda uma temática que será fortemente desenvolvida por Bernard Malamud (1914-1986), romancista e contista, de ascendência russa, tendo já nascido em Nova Iorque.

Apesar da nova vida para a família Singer, Mendel continua a viver como se vivesse no país natal e há um aspecto importante que o consome à medida que os anos passam: o facto de Menuchim ter ficado a cargo dos vizinhos na longínqua Zuchnow. “Cantava nos bons e nos maus momentos. Cantava quando agradecia aos céus e quando os temia. O seu balanço era sempre o mesmo. E só na sua voz, um ouvinte atento teria reconhecido se Mendel, o justo, estava reconhecido ou pleno de angústias.” (p. 143)

A guerra estala e tudo se complica na vida de Mendel Singer e na de sua família, ficando adiada a viagem para ir buscar o filho na Europa. A América que é tida para tantas pessoas como a terra das oportunidades e da riqueza, para Mendel esse sonho americano estava cada vez mais distante, ficando cada vez mais consumido perante a desgraça e tragédia que se instala no seio da família ao ponto de se ter arrependido de sair de Zuchnow (integrada na Polónia após a guerra), estando praticamente a perder a fé em Deus. "Se lá tivéssemos ficado - pensava Mendel - nada disto teria acontecido! Jonas tinha razão, Jonas o mais burro dos meus filhos! Amava os cavalos, amava a aguardente e amava as mulheres, agora está desaparecido! Jonas, não vou rever-te nunca mais, não vou poder dizer-te que tinhas razão ao tornares-te um cossaco. - "Porque têm de andar sempre a cirandar pelo mundo?" - dissera Sameschkin. "É o diabo que corre convosco!" Ele era um campónio, o Sameschkin, um campónio inteligente. Mendel não queria vir. Deborah, Mirjam, Schmarjah - eles é que queriam partir, andar pelo mundo. Era melhor ter ficado, amado os cavalos, bebido aguardente, dormido nos campos, deixado Mirjam andar com cossacos e amado Menuchim." (pp. 158-159)

A vida de Mendel Singer torna-se de tal modo desgastante, marcada por tantas coisas negativas que só trazem dor que é aqui que a sua vida se torna semelhante à de outros eleitos de Deus, como Jó do Velho Testamento. “O meu coração ainda bate, os meus olhos ainda vêem, os meus membros ainda se mexem, os meus pés ainda andam. Como e bebo, rezo e respiro. Mas o meu sangue estagna, as minhas mãos estão murchas, o meu coração vazio. Já não sou Mendel Singer, sou o que resta de Mendel Singer. A América matou-nos. A América é uma pátria, mas é uma pátria mortal. O que na nossa terra era dia, aqui é noite. O que na nossa terra era vida, aqui é morte. O filho que lá se chamava Schemarjah, aqui chamava-se Sam.” (p. 154)

Numa época em que Deus é parco em milagres, Mendel é inesperadamente visitado pela mão de Deus que lhe concede uma graça, um milagre, semelhante aos descritos no Velho Testamento. É neste aspecto que as obras de Joseph Roth reflectem aquele carácter mágico da sua prosa, a elegância das suas palavras, a sua generosidade sem limites e um coração pejado de amor pelos homens e pelo mundo. "Embora Deus tudo possa", começou Menkes, de todos o mais sensato, "há que pôr a hipótese de ele já não fazer grandes milagres por o mundo já não os merecer. E mesmo que Deus quisesse, no teu caso, fazer uma excepção, impedi-lo-iam os pecados dos outros." (pp. 166-167)
É inesperado o desfecho de “Jó” (ou “Hiob”), mas de uma rara beleza que nos enobrece enquanto seres humanos. Neste romance em particular, compreendemos o verdadeiro sentido da palavra, da língua, da capacidade de comunicar e passar uma mensagem de teor universal e universalizante, capaz de encher a humanidade e o mundo com valores, com tudo quanto é bom, com sentido, com amor e paz de espírito.

Marcante e genuinamente belo, “Jó – Romance de um homem simples” continua a permanecer uma pérola da literatura contemporânea escondida entre milhares de livros que povoam as livrarias. Sendo cada vez mais difícil separar o trigo do joio com o que é trazido à luz - numa época em que, não raras vezes, as editoras oferecem lixo envergonhando aquilo que é literatura e confundindo os leitores com propostas equívocas ou até mesmo críticos com a sua rede de amigos que prestam favores alternadamente em nome de algo que não o da literatura, na maioria das vezes -, é com nomes como Joseph Roth que necessitamos de (re)considerar o sentido da literatura. Talvez por estas razões, Joseph Roth seja um autor com maior dispersão editorial no nosso país, no que respeita à edição das suas obras, a saber: “Judeus Errantes” e “Fuga Sem Fim” (Sistema Solar), “A Marcha de Radetzky” (Vega), “A História da 1002ª Noite” (E-Primatur), “Confissão de um Assassino” (Cavalo de Ferro), “O Leviatã”, “A Lenda do Santo Bebedor” e “O Chefe de Estação Fallmerayer”, publicado recentemente (Assírio & Alvim) e a obra em análise “Jó – Romance de um homem simples” (Ulisseia).

Texto da autoria de Jorge Navarro

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