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sexta-feira, 26 de abril de 2019

A Escolha do Jorge: "As Moscas de Outono”



Tatiana Ivanovna murmurou: «Em nossa casa…», e calou-se. De que servia? Tinha-se acabado há muito tempo… Estava tudo acabado, morto…” (p. 75)
Irène Némirovsky (1903-1942) é uma das mais importantes escritoras do século passado, cujo nome voltou a ser recuperado na sequência da descoberta do manuscrito inacabado de “Suite Francesa” pela sua filha Denise Epstein-Dauplé, em 2004, e que rapidamente se tornou um sucesso tendo sido adaptado ao grande ecrã,em 2015, por ocasião da comemoração dos 70 anos da libertação de Auschwitz.
“David Golder” (1930) foi o primeiro romance de Irène Némirovsky, que se tornou numa das revelações da literatura daquele ano. No ano seguinte, em 1931, a escritora volta a repetir a fórmula de sucesso com a edição de “O Baile” e, em 1932, é publicado “As Moscas de Outono,” que é agora publicado pela primeira vez em Portugal.
De um modo geral, as obras de Irène Némirovsky têm bastante de autobiográfico, tanto as questões familiares e, em particular, a difícil relação com a mãe, como o percurso feito pela sua família de tradição judaica que emigra da Ucrânia para Paris. Estes aspectos são muito frequentes nas suas obras e, no caso específico de “As Moscas de Outono” não é excepção.

Este romance breve tem como personagem principal Tatiana Ivanovna, uma senhora que viveu durante meio século com a família Karine, acompanhando de perto duas gerações desta família ucraniana. Tatiana Ivanovna era a responsável pela educação dos filhos da família que, por sua vez, se tornaram pais, criando também os filhos daqueles. Com fortes ligações à terra e à família que a adoptou depois da perda do marido e do filho, Tatiana Ivanovna vê nesta família a sua família e os filhos como sendo o filho falecido e os demais que não teve.
É Tatiana Ivanovna quem comunica à família a morte de Youri, em 1918, no final da 1ª Guerra Mundial e, a partir daí, acompanha os Karine rumo ao Ocidente, para Paris, onde a família iniciará uma nova vida.
Fascinados pela vida parisiense, os Karine, vibram com a nova realidade, numa época também marcada pelo final da guerra e pelo frenesim de retomar a vida normal, os estudos, as festas, os namoros, os convívios, os “loucos anos 20” a imporem-se aos poucos com aquele desejo imenso de viver intensamente a vida.
Mas Tatiana Ivanovna já se sente velha e cansada e cada vez menos prestável e esta nova vida. Numa cidade distante da sua terra natal em que tudo lhe é estranho, Tatiana Ivanovna deseja pela neve que tarda em chegar e que seria ao menos a única alegria que Paris lhe poderia oferecer. Ligada para todo o sempre à solidão trazida com a morte de Youri, Tatiana Ivanovna ficou presa ao passado e agarrada às memórias. A morte de Youri quebrou algo dentro de Tatiana Ivanovna, a sua vida apagou-se deixando de fazer sentido porque Youri era como que o substituto do seu próprio filho que perdera anos antes.
“As Moscas de Outono” é um romance de amor e perda. Amor incondicional centrado numa mulher que tudo o que perde, dá em amor, por amor aos outros que também a reconhecem como um elemento fundamental no seio da sua família.
“As Moscas de Outono” é melancolia em estado puro. Qualquer um dos romances de Irène Némirovsky tem algo de extraordinário que nos leva a mergulhar nas narrativas e a amar os seus personagens – a detestá-los também, se for caso disso -, mas a essência deste romance alude, em certa medida, para o inolvidável conto de Nicolai Gógol “O Capote” ou “O Chefe de Estação Fallmerayer” e “A Marcha de Radetzky” de Joseph Roth.
Poderíamos afirmar que Irène Némirovsky é uma genuína herdeira daqueles escritores, daquele espírito e de uma cultura que se perderam com a 2ª Guerra Mundial, tendo também a própria escritora sido vítima da perseguição nazi, pela sua ascendência judaica, vindo a falecer em Auschwitz, em 1942.

Excertos:
"O apartamento era pequeno, escuro, abafado; cheirava a poeira, a tecidos velhos; o tecto baixo parecia pesar sobre as cabeças; das janelas via-se o pátio, estreito e profundo, de muros caiados, que reverberavam cruelmente o sol de Julho. Ao despontar da manhã fechavam os postigos e os batentes das janelas, e nessas quatro pequenas divisões escuras, os Karine viviam até à noite, sem sair, estonteados com os ruídos de Paris, respirando com desconforto os fedores das pias de despejo das cozinhas, que subiam do pátio. Eles iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, coam penosamente, exaustas e arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas.” (pp. 51-52)

"Quando ficou sozinha, foi sentar-se diante do retrato de Youri. O olhar dela fixava-o, mas outras imagens passavam-lhe igualmente na recordação, mais antigas, e esquecidas por todos. Rostos defuntos, vestidos velhos de meados do século, apartamentos abandonados... Lembrava-se do primeiro gritinho queixoso e estridente de Youri... «Como se soubesse o que o esperava», pensou ela. «Os outros não choraram assim...» Depois sentou-se à janela e começou a remendar as meias." (p. 67)

"- Quando é que o Inverno chega, afinal? - dizia. - Ah, meu Deus, já faz imenso tempo que não vemos nem o frio nem o gelo... O Outono é bem grande, aqui... Em Karinovka, de certeza, já está tudo branco, e o rio congelou... Lembra-se, Nicolas Alexandrovitch, quando tinha três, quatro anos, eu, eu era jovem nessa altura, e a sua falecida mãe dizia: "Tatiana, vê-se bem que és do Norte, minha filha... À primeira neve, perdes o tino." Lembra-se?
- Não - murmurava Nicolas Alexandrovitch com um ar cansado.
- Eu lembro-me, e daqui a pouco - resmungava ela - só vou ficar eu para recordar..."
(p. 70)

Texto da autoria de Jorge Navarro

dos com os ruídos de Paris, respirando com desconforto os fedores das pias de despejo das cozinhas, que subiam do pátio. Eles iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, voam penosamente, exaustas, arreliadas. contra os vidros, arrastando as asas mortas."



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