Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A Convidada Escolhe: "A Saga de Selma Lagerlöf"

A Saga de Selma Lagerlöf, Cristina Carvalho, 2018 

Cristina Carvalho é uma escritora portuguesa que eu desconhecia. Selma Lagerlöf, ao contrário, conheci-a de trechos lidos aos meus alunos de Português e posteriormente quando comprei e ofereci “A Viagem Maravilhosa de Nils Holgerson” ao meu filho quando era pequeno.

Mas Selma Lagerlöf é, com efeito, uma escritora muito pouco conhecida em Portugal, apesar de a sua obra estar largamente difundida e traduzida em dezenas de línguas. E teve a felicidade de a sua obra ter sido profusamente lida e divulgada no seu país enquanto foi viva. Teve a felicidade de ter sido a primeira mulher laureada com o Prémio Nobel de Literartura em 1909 e foi a primeira mulher admitida na Real Academia Sueca, um lugar até então exclusivamente destinado a homens. Mulher invulgar, feminista, activista da paz, divulgou de forma intensa a causa dos direitos das mulheres, foi professora, amou a Natureza e conseguiu divulgar de forma pedagógica e acessível a história e a geografia da sua amada Suécia.

Neste livro, Cristina Carvalho consegue transmitir-nos o fascínio que a obra e a forte personalidade de Selma a impeliram a escrever este romance biográfico, em que interage com a escritora sueca, chegando a haver diálogos entre as duas como se ambas estivessem vivas. Não é um romance qualquer. É uma prova de amor. Uma paixão. Logo na nota introdutória, Cristina Carvalho avisa “Este romance biográfico foi escrito a horas imprecisas do dia ou da noite; não obedeceu a nenhuma rotina disciplinada. Como em todos os actos de paixão, fui sobrevivendo em equilíbrios improváveis.” E na nota final escreve “É com muito desgosto e com saudades transcendentes que termino a escrita deste livro… Para Selma Lagerlöf, com amor.”. Sendo uma obra de ficção, há, no entanto, uma grande precisão nas datas e todo um cuidado muito grande nas descrições e nos detalhes que levaram a que a autora se deslocasse à terra de Selma no início da escrita do romance e mais perto do final, para confirmar dados e informações.

É um livro para ser lido e saboreado. É muito detalhado nos pormenores da vida de Selma, desde que nasceu, quando a velha vidente, a tia Wennervik enunciou uma série de previsões que viriam a concretizar-se ao longo da vida – o defeito físico na perna, uma vida longa, viagens e papéis, muitos papéis e livros – a infância solitária muito marcada pela presença alegre do “querido pai” e das leituras, a casa Marback que será vendida e que ela irá comprar, recuperar e reconstruir mais tarde, o prazer que a experiência como professora lhe proporciona, mas que irá abandonar para se dedicar inteiramente à escrita e à defesa dos seus ideais de feminista como outras mulheres suecas do final do século XIX destacadas na luta pelo direito ao voto e pelo direito ao estudo para todas as mulheres. E o fim da vida, aos 81 anos em casa, frente à janela naquele Março agreste e fitando a fotografia da sua querida Sophie Elkan.

Foi uma vida longa e cheia como a tia Wennervik tinha previsto. Em contraciclo com o que a tradição e o “destino” reservava às mulheres: não se casou,  mas teve uma relação apaixonada por duas mulheres – Sophie e  Valborg – quando na Suécia a homossexualidade ainda era reprimida. Foi professora usando uma pedagogia e metodologias nada convencionais com as suas alunas e conseguiu criar um livro, uma lição da história, da cultura e da geografia da Suécia, que é uma viagem da Escândia até à Lapónia, seguindo as migrações dos gansos bravos dirigidos por Akka de Kebnekaise e em que Nils é o herói intérprete dessa viagem maravilhosa, que foi vivida por milhares de crianças suecas e de outros países onde o livro foi traduzido e divulgado. Selma teve sempre da educação e do conhecimento uma perspectiva emancipadora que a levou a abraçar os ideais feministas e mais tarde, quando instalada na sua casa restaurada e na grande quinta onde dirigia muitos trabalhadores, oferecia-lhes jornais e proporcionava-lhes a audição das notícias na rádio, para que estivessem a par do que se passava fora dos limites estreitos do trabalho diário. A cena do corte da sua magnífica trança representa o corte com o atavismo e um sinal de afirmação, de coragem e de revolta contra o imobilismo.

É um livro com muita luz, onde se respira liberdade, em que a Natureza é omnipresente. Selma amava a Natureza, as florestas de bétulas, as macieiras, as flores, a neve, os lagos. Para ela a natureza palpitava de vida, de seres com vida própria, tinha-lhe amor e respeito. Mas não só as vidas vegetais, também os alces, os lobos, os gansos, os corvos e os seres não palpáveis, mas em que acreditava piamente como os gnomos, os duendes, os fantasmas, as bruxas e os trolls. Não só a enfermidade que a paralisou durante muito tempo foi responsável por essa sensibilidade especial pela natureza, mas também o carinho das pessoas que lhe adoçaram a solidão dos dias ensinando-a a ler e a escrever – a governanta Aline Laurell – ou quem a ensinou a sonhar e a enveredar pelo mundo da fantasia – Backa-Kajsa – e também o pai cuja morte foi um desgosto profundo para ela.

A escrita foi intensa desde sempre e também, antes do primeiro romance, lhe provocou as dores da dúvida da aceitação e do reconhecimento, as dores da solidão da ausência de com quem partilhar. Foi assim até ao primeiro romance. Mas depois tornou-se-lhe claro que a sua vida seguiria o caminho da escrita. Intensa.

Independentemente de a casa Marback onde cresceu, de a sua compra e recuperação mais tarde terem sido dos maiores sonhos concretizados, e onde viveu muitos anos, as viagens dentro do país e no estrangeiro tiveram sempre um papel muito importante no seu desenvolvimento intelectual e emocional. Cristina Carvalho descreve-nos a casa, imaginamo-la com vida, com a vida quando os pais eram vivos e os irmãos e irmãs ainda lá viviam, nos dias das caçadas ao alce, com os sons e os cheiros vindos da cozinha, com o medo e a atracção que o sótão despertava em Selma, vemos o jardim com o lago e as macieiras, vemos Selma mais velha no escritório a ler e a escrever cartas, poemas, contos, livros. Papéis, muitos papéis. Vemos o quarto com a mobília que Sophie deixou a Selma quando morreu. E na entrada, o ganso empalhado a recordar Akka de Kebnekaise.

Estou certa que a leitura de “A Saga de Selma Lagerlöf” vai despertar em muitos de nós a vontade de ler Selma Lagerlöf. Certamente uma escrita luminosa. Obrigada Cristina Carvalho pelo belíssimo romance biográfico.

4 de Dezembro de 2018

Almerinda Bento

Sem comentários:

Enviar um comentário