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segunda-feira, 11 de junho de 2018

A Escolha do Jorge: “O Mar”



“O Mar” – John Banville (Sextante)

"Na realidade, uma pessoa quase podia reviver a sua vida desde que fosse capaz de fazer o esforço necessário para convocar as recordações."

Premiado com o Man Booker, em 2005, “O Mar” do irlandês John Banville (n. 1945) regressa novamente às livrarias através da edição recente da Sextante, cuja linha editorial conhece neste momento um novo fôlego.

“O Mar” é um romance extraordinário, profundo, denso e de uma complexidade que nos abala desde as primeiras páginas. A escrita elegante e intimista de John Banville traduz-se nesta obra singular e de referência da literatura contemporânea.

Logo nas primeiras páginas, o leitor mergulha num mar de vivências e recordações de Max Morden, o personagem principal, e percebe que está perante uma obra à qual não ficará indiferente.

Passado e presente ligam-se de uma forma intensa neste romance que tem o mar como pano de fundo da narrativa. O mar que apreciamos e que nos extasia nas férias de Verão, mas também a tragédia associada ao mar que também está presente no romance. É esta dualidade prazer-dor que é transversal em todo o romance de John Banville.

Após a morte da sua esposa, Max Morden regressa à pequena localidade onde passou férias com a sua mãe quando era criança e aí vão desfiando as memórias de outros tempos, lugares e pessoas que o marcaram. Anne, a sua esposa, definhou ao longo de um ano, sendo agora recordada, desde quando lhe foi diagnosticada a doença até ao seu falecimento, o acompanhamento da doença, o começar a deixar ser, o começar a ir e o derradeiro final.

É a morte que conduz Max Morden à pequena localidade onde passou as férias na sua infância. É a repetição de algo tenebroso, trágico que vivenciou em tenra idade que o marcou para sempre que o faz regressar ao passado como tentativa de encontrar a redenção ou de compreender a complexidade da vida.

Em criança, Max Morden conheceu a família Grace, pertencente a outro estatuto social, tema, na verdade, muito desenvolvido nesta obra, quase transportando a ideia de que cada pessoa sabe exactamente a que universo social pertence, sendo quase impossível a articulação entre esferas sociais diferentes.

Seduzido pela vida desta família, não só pelas posses, mas também pela sua excentricidade, Max Morden, ainda na pré-adolescência, sente-se duplamente seduzido, por Chloe, a menina da família, com idade próxima da sua, mas também pela mãe desta, Connie, uma mulher deslumbrante e sedutora. O despertar da sexualidade torna Max Morden num vouyerista como forma de dominar e controlar o objecto sexual proibido ao contrário dos beijos e carícias inocentes que troca com Chloe no cinema e na praia. "Olhar com lascívia, com inveja ou com ódio é o mesmo que cobiçar, invejar ou odiar. O desejo não concretizado deixa na alma uma mancha igualmente indelével."

São estes jogos sexuais percebidos pelos vários intervenientes que tornam esta obra igualmente sedutora através do recurso a uma linguagem de rara beleza.

É neste universo tão diferente da vida de Max Morden que toda a narrativa se vai desenvolver. Foi um Verão marcante para este jovem, não só porque está associada a descoberta da sexualidade, os seus jogos, a sensualidade, as carícias, para logo a seguir culminar com a tragédia.

É, pois, a morte da sua esposa Anne que traz Max Morden, novamente, para junto do mar, onde recorda o mar que traz alegria, mas que também provoca dor.

Compreendemos neste romance o quanto uma recordação do passado pode condicionar toda a vida presente. É a ideia de perda que nos faz repensar a vida, a relação que tivemos com aqueles que amámos e aqueles que vivem connosco. Ao longo de “O Mar”, Max Morden reflecte sobre a relação que tem com a filha Claire. Nenhum dos dois é uma pessoa muito presente, contudo, ambos compreendem da necessidade e urgência em estreitar os laços.

Mais do que as recordações do passado e a morte, “O Mar” é um romance sobre a vida e os laços que estabelecemos com os outros. A importância e a necessidade de viver, de agarrar a vida estão igualmente presentes nesta obra singular com sabor agridoce que nos acalenta uma certa melancolia.

Excertos:
“Ali parado naquele cubíbulo de luz branca, vejo-me transportado por momentos para uma praia distante, real ou imaginada, não sei bem, embora os detalhes possuam uma definição onírica precisa, estou sentado ao sol num rebordo duro de areia xistosa e seguro nas mãos uma grande pedra azul, lisa e macia. A pedra é seca e quente, pressiono-a contra os lábios, possui um sabor salgado evocativo do fundo do mar, de ilhas distantes, de lugares perdidos sob folhagens imensas, de frágeis esqueletos de peixes, de destroços e de restos em decomposição. A leve ondulação à minha frente junto à linha de água sussurra numa voz animada, segredando impetuosa uma catástrofe antiga, o saque de Tróia, talvez, ou o desaparecimento da Atlântida. As margens são salgadas e brilhantes. Pérolas de água desfazem-se numa corrente prateada na pá de um remo. Vejo ao longe o barco negro a aproximar-se imperceptivelmente a cada instante que passa. Eu estou lá. Ouço o silvo da vossa sirene. Estou lá, estou quase lá.”

"O que me desagradava não era aquilo que eu era, refiro-me ao meu eu singular e essencial — embora conceda que a própria noção de um eu singular e essencial é controversa —, mas a acumulação de afectos, de inclinações, de ideias feitas, de tiques de classe, que o meu nascimento e a minha educação me tinham inculcado em vez de uma personalidade. Em vez de, digo bem. Nunca tive uma personalidade no sentido em que os outros têm ou julgam ter. Sempre fui um evidente zé-ninguém, cujo maior anseio era ser um não tão evidente alguém. Sei o que digo."

Texto da autoria de Jorge Navarro

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