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quinta-feira, 24 de maio de 2018

A Escolha do Jorge: A Ordem do Dia


“A Ordem do Dia” é a mais recente obra do francês Éric Vuillard que lhe valeu o Prémio Goncourt
em 2017. Nesta obra singular, num misto de romance e ensaio, o autor revisita os bastidores da ascensão de Hitler, em 1933, nas vésperas das eleições que tiveram lugar em Março desse ano.

Podemos resumir “A Ordem do Dia” em dois pontos fulcrais: o famoso dia 20 de Fevereiro de 1933 em que os proprietários das grandes empresas da Alemanha foram convocados por Hitler para uma reunião no Reichstag no intuito de financiarem a campanha eleitoral em favor do partido Nazi e os acontecimentos que estiveram por trás da “Anschluss” (Anexação) da Áustria, com os avanços e recuos na tomada de decisão pelo “sim” inevitável.

O apoio financeiro a Hitler, assim como a Anexação da Áustria continuam a ser temas que, de um modo geral, embora se tenha conhecimento, pouco se fala. São temas que, em certa medida, geram um certo desconforto aos países em questão e que se evita a todo o custo investigar e conhecer as várias facetas da História, trazendo mais luz sobre os acontecimentos que marcaram o período mais macabro do século XX na Europa.

Hitler nunca teria levado a termo a grandiosa máquina de guerra assassina sem o apoio financeiro dos principais detentores do capital da Alemanha, antes das eleições realizadas em 1933. Deste modo, a política de guerra, levada a cabo por Hitler, só foi possível com o dinheiro de empresas que, nalguns casos, ainda hoje existem, tais como BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz e a Telefunken. Ainda que intimados por Hitler, o líder do Partido Nazi, ainda em ascensão, e com um apoio cada vez maior junto das massas populares, os donos do capital alemão, ao promoverem a máquina de guerra, também perceberam que iriam retirar dividendos, sobretudo através dos judeus que iriam constituir parte da mão-de-obra nas suas empresas e, neste caso, gratuita.

No caso específico da Anexação da Áustria, já vigorava no país uma ditadura de direita estando o chanceler Dollfuss à frente do país, sendo substituído por Schuschnigg após o seu assassinato. É com Schuschnigg que vão decorrer as “negociações” com Hitler, no sentido de pôr em marcha a Anexação que deveria dar a ideia de algo aceite democraticamente após consulta popular a fim de iludir a comunidade internacional, nomeadamente a França e a Inglaterra. Os nazis austríacos, em número crescente, antes do início da 2ª Guerra Mundial, deveriam tomar conta dos desígnios daquele pequeno país de língua alemã e país natal de Hitler, estando, dessa forma, ao serviço da grande máquina de guerra que era a Alemanha.

Éric Vuillard dá cor aos possíveis diálogos entre as partes envolvidas, dando ao leitor a ideia de como poderiam ter ocorrido estas duas situações em particular. É interessantíssima a forma como o autor recria momentos de tensão face a difíceis tomadas de decisão que tiveram consequências catastróficas, mais tarde, com a eclosão da guerra, em 1939.

Éric Vuillard conduz-nos aos bastidores de momentos cruciais, fazendo uma excelente articulação entre o romance e o ensaio. Há um permanente fio condutor ao longo de toda a obra, a necessidade de fazer História ainda que por via da literatura e sempre acompanhada com um discurso que apela sucessivamente à consciência face aos sucessivos erros que se cometeram no passado recente, mas também o forte pendor moral que atravessa (quase) toda a narrativa.

“A Ordem do Dia” procura repor a verdade histórica, ou pelo menos uma certa parte da História que se tem tentado omitir ou não fazer por conveniência das partes envolvidas. No fundo, Éric Vuillard explica que uma máquina de guerra não se faz com um único responsável e que, neste caso, vêm a escrito todos aqueles que financiaram o grotesco e o impensável.

Numa época em que a insegurança toma conta cada vez mais da vida dos cidadãos europeus, aliada ao avanço gradual a extrema-direita no continente, não deixa de ser pertinente ler esta obra na medida em que vamos nela encontrar muitos pontos em comum com a forma como a sociedade e a economia contemporâneas se desenvolvem e articulam. Mais, “A Ordem do Dia” apresenta-se também como a necessidade de estarmos atentos às movimentações do poder político e às tentações que dali advêm.

Excertos:
"Chamam-se BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Por estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí, no meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de fevereiro, são apenas os seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah. Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às portas do Inferno." (p. 26)

"Não se cai nunca duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor. E deseja-se tanto não voltar a cair, que se resiste, se grita. Partem-nos os dedos aos pontapés, os dentes, com bicadas, roem-nos os olhos. O abismo está rodeado de moradas imponentes. E a História ali está, deusa razoável, estátua imóvel no meio da praça das Festividades, recebendo por tributo, uma vez por ano, ramos secos de peónias e, à laia de espórtula, em cada dia, um pouco de pão para os pássaros." (p. 141)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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