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quinta-feira, 22 de março de 2018

A Escolha do Jorge: "A Tomada do Poder"



“Rezámos pela nossa libertação, e a libertação veio – sob a forma de uma nova ocupação.” (p. 104)

Filho de polacos e nascido na Lituânia, Czeslaw Milosz (1911-2004) é um dos mais importantes nomes das letras em polaco, tendo sido laureado com o Nobel de Literatura, em 1980, entre outros prémios literários que arrecadou ao longo da sua carreira.
      Para além da ficção e da poesia, Czeslaw Milosz notabilizou-se no campo da ensaística e obras como “A Mente Aprisionada”, publicada em 1953, vieram a questionar a forma de pensamento dos intelectuais no decurso da tomada do poder na Polónia, com a instauração do comunismo, no final da 2ª Guerra Mundial.
      Insatisfeito com a mudança de poder e o novo rumo que a Polónia seguia então, Czeslaw Milosz exilou-se em Paris e as suas obras foram proibidas na Polónia durante o regime. Somente em 1980, com a atribuição do Prémio Nobel de Literatura é que muitos outros escritores e a população em geral ficaram a conhecer as obras de Czeslaw Milosz, já numa época em que se verificava um apaziguamento do regime em oposição aos anos de severa governação sob o domínio estalinista.
Em relação à obra “A Tomada do Poder”, publicada em 1955, é um misto de romance e ensaio. Ainda que os personagens da obra sejam ficcionais, o enquadramento histórico e político é apresentado com bastante rigor.
      Na verdade, “A Tomada do Poder” constitui uma obra fundamental para a compreensão de um período fortemente conturbado na Polónia, e em especial, na capital Varsóvia, nos anos de 1944 e 1945. Não há muita literatura sobre esta temática específica, além de obras de referência historiográfica sobre o final da 2ª Guerra Mundial ou sobre o período comunista em geral.
      Mas esta obra é crucial na medida em que centra a sua atenção no episódio da Insurreição de Varsóvia que teve lugar em Agosto de 1944, em que os polacos com poucos meios mostraram grande resistência aos alemães ainda que estes estivessem já numa fase em que a guerra estava praticamente perdida. Em todo o caso, os alemães puseram cobro a este movimento, eliminando os opositores e acabando por destruir ainda mais a capital que, já de si, se apresentava em ruínas.
      A par deste episódio cujos monumentos à Insurreição de Varsóvia encontram-se numa das principais praças da cidade, a ideia de reconstrução da capital é algo que está bastante marcada nesta obra. A necessidade de reconstruir Varsóvia constitui em si mesma uma forma de ressurgir dos escombros e olhar para o futuro. Segundo Czeslaw Milosz, “a reconstrução de Varsóvia irá unificar a nação dividida.” (p. 129) “Respirou profundamente o ar da Primavera. A escala grandiosa dos recentes acontecimentos e o facto de se encontrar ali, a caminhar pelas ruas daquela cidade – destruída, mas já participante do futuro e de uma nova humanidade – embriagava-o.” (p. 97)
      Varsóvia é seguramente uma das cidades em que partindo de frases como “Varsóvia tinha deixado de existir.”(p. 113) ou “As cidades dos homens não são duradouras.” (p. 113) que compreendemos o sentido de ideias como “Prossegue a construção da História.” (p. 110), sobretudo porque o país, invadido pelos nazis, constituiu o motor de arranque de uma guerra sangrenta anunciada, passou, no final do conflito, do ponto de vista político, da extrema-direita à extrema-esquerda, no que concerne à forma como a Polónia passa a ser governada, seguindo as orientações de Estaline.
      Em “A Tomada do Poder” assistimos a indivíduos que se notabilizaram pelo seu carácter maquiavélico e que, tendo combatido do lado do nacionalismo, perseguindo judeus (e não esquecer que a população de Varsóvia antes do início da guerra tinha mais de 30% de judeus), é agora “aproveitado” pelo novo regime, comunista, com o objectivo de levar a cabo outras medidas extremistas assentes no medo e no terror. “Podemos ficar com ele. Dar-nos-ia outros pássaros da mesma plumagem.” (p. 101)
      Não raras vezes o leitor é confrontado com passagens perturbadoras que nos remetem não só para um período complexo tanto quanto conturbado em que o problema de identidade e o sentido da História se colocam quase em cada medida que é tomada face a uma política que se apresenta suja e abjecta. É este o universo em que se move Czeslaw Milosz. Questionar cada gesto e acto que fere, ferindo consciências, despertando para um (novo) poder que se instituiu e que em nada melhorou, mergulhando todo um país na obscuridade durante quase meio século.
      E curioso é pensar que sendo a distância entre Portugal e a Polónia  tão grande, como era possível alguém considerar que, antes da guerra, defendesse “uma ordem social baseada no catolicismo e na ditadura, à semelhança do regime de Salazar em Portugal.” (p. 51)
      Mas é o medo que ganha terreno, instalando, por sua vez o terror, que são as novas armas do comunismo. Os especialistas do terror com escola feita na Rússia vão agora impor-se numa Polónia que tenta ressurgir. É esse medo, esse permanecer de boca calada, o estar escondido, o ser vigiado que Czeslaw Milosz desenvolve em “A Tomada do Poder”. Um país que tenta ressurgir das cinzas, mas estando de cabeça baixa, acalentando a raiva e o ódio sem saber como descarregar, a não ser pela bebida ou pelo sexo fácil.
      “O meu trabalho é manter o clima psicológico debaixo de olho. Os nossos métodos para moldar consciências são quase ilimitados. Ilimitados. É esse o objectivo do terror.” (p. 99)
      “A Tomada do Poder” de Czeslaw Milosz constitui uma obra de grande fôlego e que se impõe como uma leitura obrigatória na actualidade como forma de compreensão do passado recente. Impõe-se uma tradução a partir do polaco e não do inglês, a edição possível, em 1987, quase uma década após o escritor ter recebido o Nobel de Literatura.
      Com “A Tomada do Poder” temos uma obra séria e literatura ao mais alto nível. A leitura não é fácil, a escrita é complexa e muitas vezes somos obrigados a parar para reflectir. Czeslaw Milosz continua a ser um escritor desconhecido em Portugal e, quiçá, com a publicação do ensaio “A Mente Aprisionada” no início de Abril, pela Cavalo de Ferro, este romance-ensaio possa ressurgir, com uma nova tradução, ganhando, dessa forma, o seu merecido destaque, para uma melhor compreensão da Polónia, na segunda metade do século XX e uma vez mais questionarmos o sentido da própria História.

Texto da autoria de Jorge Navarro

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