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sexta-feira, 19 de maio de 2017

A escolha do Jorge: Eu que servi o Rei de Inglaterra


      Uma das minhas recentes descobertas no mundo dos livros foi o checo Bohumil Hrabal (1914-1997) de quem já tive a oportunidade de ler “Uma Solidão Demasiado Ruidosa”, “A Terra onde o Tempo parou”, “Terno Bárbaro” e, mais recentemente, “Eu que servi o Rei de Inglaterra.”
      Um escritor que viu as suas obras proibidas durante o regime comunista e esquecido durante anos a fio, não deixa, contudo, de lhe ser reconhecida a sua genialidade. Herdeiro de toda uma tradição de grandes escritores da Europa Central, como o próprio Kafka, Bohumil Hrabal é juntamente com o seu amigo, escritor e pintor, Vladimír Boudník (1926-1968), os fundadores do explosionismo, um movimento oriundo na Checoslováquia que se caracteriza pela sombra deixada pela 2ª Guerra Mundial, assim como o inconformismo face à nova realidade de parte da Europa sob o domínio comunista. Na verdade, a obra “Terno Bárbaro” constitui por si só, uma obra que ilustra as principais características do explosionismo, assim como a estreita relação e as experiências vividas por Hrabal e Boudník numa casa
minúscula em Praga onde acontecem as histórias mais mirabolantes.
      A roçar o surreal e o fantástico, quando lemos Bohumil Hrabal entramos numa esfera da literatura que é muito própria. Estranhamos porque é diferente, mas rapidamente somos conquistados pelos seus laivos de loucura e rebeldia, alternados por momentos de uma rara e doce ternura que nos comove.“Lisa explicava-me, com orgulho, que aqui havia o ar mais saudável da Europa central – há ainda um lugar assim perto de Praga (…) -, e é aqui que existe a primeira estação europeia de criação eugénica da raça humana, o primeiro centro instalado pelo partido nacional-socialista com o fim de desenvolver a raça alemã graças ao cruzamento do sangue nobre das raparigas alemãs com o sangue puro de reprodutores selecionados, tanto na Wehrmacht como das SS, tudo em bases científicas, aqui não só diariamente aconteciam coitos nacional-socialistas, da mesma maneira que se acasalavam, como os animais, os antigos Germanos, mas aqui sobretudo as futuras parturientes, que traziam no seu seio os novos homens da Europa, davam à luz crianças que, um ano depois, partiriam para o Tirol, a Baviera e a Floresta Negra, ou para a beira-mar, para aí, nas primeiras creches e infantários, continuarem a educação do homem novo, naturalmente já sem as mães mas sob o controlo da nova escola.”
      “Eu que servi o Rei de Inglaterra” conta-nos a história de um adolescente que começa a trabalhar num hotel e que aprende todos os truques, regras e segredos da profissão através de um dos funcionários. Todas as apostas feitas entre ambos ditaram a vitória do mais velho e quando questionado “como é que sabe?”, a resposta era sempre a mesma “porque servi o Rei de Inglaterra”! Tudo constituía uma novidade para este jovem que, aliado à descoberta dos prazeres do sexo e do amor, são muitas as cenas que nos transportam para o espírito do filme “Grand Budapest Hotel” de Wes Anderson, sobretudo no ritmo alucinante em que viajamos quando o vemos, assim como na loucura que é essa mesma viagem que espelha acontecimentos históricos.
      Não sendo o melhor dos livros de Hrabal, “Eu que servi o Rei de Inglaterra” não deixa, contudo, de salientar algumas das principais características e recursos utilizados nas obras lidas anteriormente. Em todo o caso, ler Hrabal, mesmo esta obra em particular, é estarmos perante uma obra que reflecte a genialidade e originalidade deste escritor checo que muito contribuiu para a riqueza da literatura ocidental.
      Ler Hrabal é entrar no mundo da loucura, da alucinação, do surreal. Mas esta obra em particular segue em linha com um período específico da História que coincide com a ascensão de Hitler ao poder, a 2ª Guerra Mundial e a “Cortina de Ferro”, no Leste europeu, com incidência na Checoslováquia. E “Eu que servi o Rei de Inglaterra” é também perceber que a passagem da extrema direita à extrema esquerda, naquela região da Europa, foi em si mesma, um caso de loucura, de alucinação e porque não perceber que tantas vezes se pode fazer uma leitura surreal de certos períodos da História, de como foi possível terem ocorrido situações tanto horríveis como caricatas.
      Um dos momentos hilariantes desta obra é sem dúvida quando o personagem principal, apaixonado por uma alemã que venerava o Terceiro Reich, teve de se submeter a exames médicos fortemente controlados pelos nazis, em virtude de ser checo, de forma a comprovar a qualidade do seu sémen, para que não prejudicasse a concepção de uma criança pura, ariana, que iria fazer parte daquilo que chamariam “o novo homem”. Descrições cómicas à parte, o certo é que a criança do casal era deficiente mental e que só tinha apetência para pregar pregos no chão com um martelo. Esta ideia de ridículo misturada com o cómico é um dos traços da escrita de Hrabal que, neste caso em particular, serve para brincar ou mesmo ridicularizar com as ideias que estiveram em vigor numa parte da Europa durante as décadas de 30 e de 40, sem contudo, esquecermos das vítimas que estas ideias fomentaram.
      E terminando à boa maneira de Hrabal “Por hoje é tudo.” E sabem porquê? “Porque eu servi o Imperador da Abissínia!”

Excerto:
“Lisa explicava-me, com orgulho, que aqui havia o ar mais saudável da Europa central – há ainda um lugar assim perto de Praga (…) -, e é aqui que existe a primeira estação europeia de criação eugénica da raça humana, o primeiro centro instalado pelo partido nacional-socialista com o fim de desenvolver a raça alemã graças ao cruzamento do sangue nobre das raparigas alemãs com o sangue puro de reprodutores selecionados, tanto na Wehrmacht como das SS, tudo em bases científicas, aqui não só diariamente aconteciam coitos nacional-socialistas, da mesma maneira que se acasalavam, como os animais, os antigos Germanos, mas aqui sobretudo as futuras parturientes, que traziam no seu seio os novos homens da Europa, davam à luz crianças que, um ano depois, partiriam para o Tirol, a Baviera e a Floresta Negra, ou para a beira-mar, para aí, nas primeiras creches e infantários, continuarem a educação do homem novo, naturalmente já sem as mães mas sob o controlo da nova escola.”
(p. 128)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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