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quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A escolha do Jorge: Os Frutos da Terra


“Ali está o primeiro homem a habitar a região remota. Quando ali chegou, o lodo subia-lhe até aos joelhos e depois encontrou uma ladeira e aí se instalou. Seguiram-se-lhe outros, que percorreram um caminho nos baldios vazios, que foram seguidos por outros, e o caminho tornou-se uma estrada por onde agora avançavam com as carroças. Isak deveria estar satisfeito, orgulhoso. Era o fundador da povoação, era ele o margrave.” (p. 343)
Este é o mote que resume na essência “Os Frutos da Terra”, a obra de Knut Hamsun (1859-1952) que o consagrou como Prémio Nobel de Literatura, em 1920, tornando-se uma das referências da literatura ocidental e servindo de inspiração a toda uma geração de escritores como Kafka e Thomas Mann.
Podemos afirmar que “Os Frutos da Terra”, publicado em 1917, aprofunda o projecto literário de Knut Hamsun iniciado com “Os Filhos da Época”, em 1914, no qual devolve o homem à natureza, à terra, vivendo em comunhão com esta, na medida em que, em primeira instância, o homem é também um ser natural e que apenas na forma como se relaciona com a natureza consegue ser feliz. Enquanto que em “Os Filhos da Época” a narrativa desenrola-se num microcosmos, em “Os Frutos da Terra” é apresentada toda uma comunidade rural que se estende à aldeia mais próxima e até às cidades circundantes, compreendendo-se a dicotomia campo-cidade naquilo que pode ser entendido como um macrocosmos.
Está patente em “Os Frutos da Terra” a clara oposição de Knut Hamsun face à crescente industrialização do mundo ocidental na transição do século XIX para o século XX, assente na premissa de que o desenvolvimento de um país não pode, de todo, assentar nas máquinas e no dinheiro, não tornando o homem necessariamente mais feliz. O homem é apresentado como um dos elementos da natureza e é nela que deverá conhecer a verdadeira felicidade.
Knut Hamsun não descura o papel das cidades comparativamente com o mundo rural, na medida em que a cultura da cidade não deixa o homem indiferente à música, ao teatro, à ópera, e até à linguagem e ao requinte das pessoas.
Ao longo da obra é notório que todos aqueles que passam pela cidade tornaram-se pessoas diferentes, menos rudes, mais civilizadas e com vontade de conhecer o resto do país e o mundo, no entanto, a felicidade só é verdadeiramente encontrada quando os vários personagens regressam ao mundo rural vivendo em comunhão com a natureza.
Passado quase um século após a edição de “Os Frutos da Terra” e tendo em consideração as transformações que tiveram lugar em toda a Europa e no mundo com a destruição dos campos como fonte de matérias-primas para o desenvolvimento industrial e o consequente desenvolvimento urbano, esta obra assume, em certa medida, um carácter profético, dado que a civilização ocidental padece de um sentimento de perda, como que a perda do seu lugar na natureza, questionando-se o autor sobre o futuro da humanidade e procurando devolvê-la ao espaço que lhe é próprio.
A narrativa evolui ao sabor das estações do ano e dos trabalhos agrícolas. O tempo vai passando. A vida também. A população vai gradualmente aumentando naquela região remota afastada de tudo, e na qual tem de haver um esforço de todos para suportar o isolamento e a cadência das estações do ano que marcam as tarefas agrícolas.
Não sendo específico o período em que se desenrola a narrativa, poderíamos apontar para a segunda metade do século XIX. O telégrafo é instalado atravessando a região remota, estando assim ligado desde as cidades de Trondheim e Bergen, o serviço de correio torna-se mais eficaz, o comércio intensifica-se mesmo na região profundamente rural em que predomina uma economia fechada de auto-subsistência, a gradual introdução das máquinas agrícolas na ajuda das várias tarefas, a escola e até o porto marítimo da aldeia que sofreu fortes melhorias ligando a região a outras partes da Noruega e a destinos mais longínquos, quebrando, dessa forma, o isolamento, mas também fomentando a emigração.
Sendo um fervoroso opositor da crescente industrialização do mundo ocidental, na medida em que desvirtua o destino do Homem, Knut Hamsun considera que o desenvolvimento que tem lugar naquela região remota é o necessário e ponderado, sem exageros, existindo um equilíbrio na relação entre o campo e a cidade, sem que uma das partes seja beliscada em detrimento da outra. “Os colonos não se apoquentavam por causa de bens que não tinham: arte, jornais, luxos, a política valia tanto quanto o que as pessoas estavam dispostas a pagar por ela, nada mais. Os frutos da terra, por outro lado, tinham de ser obtidos de qualquer maneira. Eram a origem de todas as coisas, a única fonte. A vida dos colonos era triste e vazia? Ora, longe disso! Tinham os seus poderes superiores, os seus sonhos, amores, a sua superstição.” (p. 333) “A vida era composta por trabalho e sono, amor e sonhos…” (p. 341)
É importante ainda fazer alusão ao papel de alguns dos personagens no contexto da obra. É impossível falar de “Os Frutos da Terra” sem nos referirmos a Isak, que graças à sua obstinação conseguiu derrubar e desconstruir a ideia de deserto humano na esperança de construir uma propriedade em consonância com a natureza, cuja riqueza é retirada desta, os alimentos, os animais. A família é também a base de sustentação da vida de Isak. Identificado não poucas vezes como “monstro aquático”, Isak é um homem de acção, trabalho, pragmático, revelando-se o mais sensato de todos os homens e a imagem perfeita de tudo quanto conseguiu construir graças ao seu esforço em Sellanraa, a sua propriedade.
Inger, a esposa, personagem complexa, mas importante ao longo da narrativa, na medida em que, sofrendo de uma pequena deformidade e por mais tarde se ver obrigada a cumprir uma pena por infanticídio em Trondheim, é o elemento que passará a ligar o mundo citadino à ruralidade quando regressa ao lar. O caso do infanticídio, comum nos países nórdicos, serviu posteriormente de exemplo para o julgamento de casos semelhantes e sobretudo para a desconstrução da ideia de que as leis feitas por homens não protegem as mulheres e que somente quando estas tiverem o direito ao voto e consequente participação no Parlamento se poderá criar uma sociedade mais justa, cujos direitos e deveres são idênticos entre homens e mulheres no exercício da cidadania. Refira-se que o sufrágio universal feminino teve lugar na Noruega em 1910, em eleições municipais, e, em 1913, em eleições parlamentares.
Inger é também tratada verdadeiramente como uma mulher, nos seus pensamentos, desejos e actos. Inger é uma mulher cujo desejo sexual foi impulsionado pela sua experiência na cidade, desejando muito mais face ao que o campo, e sobretudo Isak, podem oferecer, entregando-se por vezes aos amores fortuitos como forma de concretização daquilo que sente, ainda que acabe por compreender que só obtém a segurança familiar através de Isak, o seu marido.
Inger constitui desta forma a ideia de concretização de alguns passos importantes naquilo que concerne à emancipação feminina na Noruega, seguindo em linha com o que, aos poucos, acontecerá na Europa e no mundo relativamente ao assunto.
Eleseus, o filho mais velho de Isak e Inger, é o protótipo de sonhador. Desde cedo teve a experiência de viver na aldeia e, mais tarde, na cidade, ficando totalmente seduzido e inebriado pelos prazeres que pode daí obter. É um sonhador inconsciente à conta do dinheiro dos pais, sobretudo porque Inger vê em Eleseus, na sua vida e nas suas viagens totalmente infrutíferas, aquilo que ela própria gostaria de ter realizado, mas sem efeito. Chegará o dia em que ambos, Eleseus e Inger, têm de acordar do sonho e encarar a realidade pura e dura, restando a Eleseus uma última viagem, sem retorno – a América.
Geissler, o meirinho, desempenha, ao longo da narrativa, um papel importante, constituindo uma espécie de alavanca para o desenvolvimento daquela região rural. Geissler tem uma visão de futuro, sabe exactamente o quê e quando os vários proprietários deverão investir para melhor proveito e sustento poderem retirar da terra. Considerado pelo filho como “nevoeiro”, uma espécie de “velho do Restelo”, Geissler não quis de forma alguma vender a montanha rica em vários tipos de minérios a uma empresa sueca e, quando o fez, cedendo aos sucessivos pedidos do filho com a intenção de ganhar dinheiro, rapidamente toda a região veio a sofrer, anos mais tarde, com a interrupção da exploração mineira em virtude de esta ter deixado de ser rentável. Toda uma região que se desenvolveu, ganhando certos hábitos alimentares, adquirindo boas roupas, entre outros aspectos do quotidiano, e rapidamente percebeu que estava perante um sério problema que agora chegava a todos.
“E vocês vivem com o céu e a terra, em conjunto com eles, em união com o largo horizonte e as vossas raízes. Não precisam de empunhar uma espada e atravessam a vida sem nada na mão e de cabeça descoberta, sempre com uma enorme gentileza.” (p. 376)
Por fim, é imperativo fazer uma alusão a Oline, uma personagem deveras complexa, oportunista e que sempre soube estar presente onde fazia falta. Mesquinha, intriguista, viscosa e venenosa, Oline é daquelas pessoas tóxicas que só existem para servir de entropia à vida de terceiros. Compraz-se na desgraça alheia e sofre quando a felicidade sorri a terceiros. Sai sempre vencedora de toda e qualquer querela, a mais simples conversa com Oline enreda o interlocutor numa teia confusa de factos em que qualquer um se vê culpado de algo que não fez ou de algo que não tenha dito ou pensado.
Oline é talvez a personagem mais interessante em “Os Frutos da Terra” porque está presente nalguns dos momentos cruciais da obra, que se apresentam como momentos de viragem na narrativa. Oline é talvez aquilo que poderíamos aludir à herança dos personagens mais complexos das primeiras obras de Knut Hamsun publicadas na última década do século XIX, como “Fome” (1890) e “Mistérios” (1892) cujos personagens principais padecem de uma esquizofrenia latente envolvendo o leitor nos seus enredos, como o caso específico de Nagel. Mas Oline é mais perversa, é inteligente e diabólica, daí ser um personagem ainda mais rico e mais interessante. “Bem, já não sei qual é a lei que regula os pecados de Sodoma, mas pobre alma que sou, sigo as palavras de Deus” (p. 327), refere Oline numa das suas últimas intervenções.
Amores impossíveis, relações tensas e suicídio como as existentes em “Pan” (1894) e “Victoria” (1898) não têm lugar em “Os Frutos da Terra”. Com a viragem do século, Knut Hamsun afasta-se desse padrão de tensão psicológica patente nos seus personagens, sem deixar, contudo, de criar situações ricas do ponto de vista literário na relação dos seus personagens.
No que respeita à tradução de “Os Frutos da Terra”, foi feita a partir do norueguês, por João Reis, acabando por devolver aos leitores portugueses uma das mais importantes obras-primas da literatura contemporânea, além de constituir um marco na carreira de Knut Hamsun, obra que constituiu a alavanca para ser galardoado com o Nobel de Literatura, em 1920, e o seu reconhecimento a nível mundial.
Tendo em consideração que esta obra conhecera, em 1942, uma primeira edição, com o título “Pão e Amor”, com tradução a partir do francês, não deixa de ser interessante (ou curioso) que, quando a comparamos com a actual tradução, ficamos com a ideia de se tratarem de dois livros totalmente diferentes. Ainda que “Pão e Amor” mantenha na sua essência o espírito e a ideia central da obra integral apresentada em “Os Frutos da Terra”, edição da Cavalo de Ferro, são muitas as partes que foram cortadas ou mesmo mal traduzidas, há situações em concreto que acontecem a uns personagens e quando as comparamos com a tradução a partir do original, acontecem precisamente a outros e até noutros contextos, não esquecendo o facto de alguns personagens nem sequer aparecerem na tradução de “Pão e Amor”.
A edição de “Os Frutos da Terra” publicada pela Cavalo de Ferro investe, desta forma, no rigor no que concerne à tradução, como devolve ao leitor uma obra ímpar à qual desejará retornar graças à sua rara beleza.
Não deixa de ser interessante que ainda em relação à edição de “Pão e Amor”, publicada em 1942, fora a primeira obra de Knut Hamsun publicada em Portugal cuja mensagem e linguagem utilizadas então reflectem as ideias essenciais do salazarismo numa altura em que Portugal assentava na terra e na vida rural.

Texto da autoria de Jorge Navarro

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