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terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Convidada Escolhe: A Amiga Genial

É um livro tão bom, tão bem escrito, que nos agarra desde o princípio, percebendo-se logo no prólogo – Apagar o rasto – que só no final do último volume desta tetralogia saberemos o que aconteceu a Lila, ou talvez não, de tal forma ela é uma rapariga imprevisível, independente e diferente de todas as outras do bairro.
"A Amiga Genial" decorre nos anos 40 e 50 do século passado num bairro pobre dos subúrbios de Nápoles e tem como personagens principais Lila/Lina Cerullo e Lena/Lenù Greco duas meninas em que a infância e adolescência são marcadas por uma ligação muito forte que irá persistir em etapas posteriores das suas vidas. Lila é desassombrada, corajosa, determinada e exerce uma atracção especial sobre todos os miúdos e miúdas do bairro e colegas da escola. Para eles Lila era "terrível e brilhante", mas o facto de nascer na família dum sapateiro marcou o seu percurso escolar limitado à escola primária. "Porque é que a tua irmã que é rapariga há-de estudar?" diz o pai Cerullo para Nino, o irmão mais velho de Lila. No entanto, isso não a vai impedir de continuar como autodidacta a pedir emprestados livros na Biblioteca e a estudar e ajudar Lenù nos estudos, sempre que esta tem dúvidas ou dificuldades, quer seja no Latim, quer no Grego! Elena Greco a narradora sente uma atracção enorme pela colega, olhando-a como exemplo, pela excepcionalidade e pela diferença num ambiente tão pobre e deprimido como é aquele em que vivem e de que dificilmente é possível escapar. Logo no início ela enumera uma série de palavras e de desastres que associa à morte, ligados à sua meninice e que a têm acompanhado ao longo da vida em forma de medos: tétano, tifo, entulho, torno, bomba, tuberculose ou supuração. Recorda a sua infância marcada pela violência, pelas brincadeiras dos bandos de miúdos e, sobretudo, pela agressividade das mulheres, mais violentas que os homens, pelas vinganças e pelas desforras que envolviam as famílias. Embora dentro do bairro houvesse diferenciação social que se foi tornando mais visível com os anos e com a modernização do próprio bairro, havia coisas a que só uma ínfima minoria conseguia aceder como a admissão à escola média, ou à escola secundária e mesmo à universidade, realidades desconhecidas, tal como a experiência de ver o mar, o que não era usual para aquelas crianças que apenas conheciam os limites estreitos do bairro.
A infância de Lena e de Lila termina com o assassinato de dom Achille e com o acesso de Lena à escola média. As novas amizades que Lena vai fazer na nova escola que a levam a partilhar confidências com outras raparigas não a vão afastar de Lila, acontecendo que por vezes Lena tem reacções inusitadas que a surpreendem, pois são mais próprias da amiga do que dela própria. A puberdade e as transformações no corpo das raparigas se, por um lado acicatam o assédio generalizado dos rapazes, por outro, levam os irmãos a comportar-se como machos protectores das irmãs. Mas, se a generalidade das raparigas se acobardavam ou fingiam não ouvir ou ver as obscenidades ou galanteios dos rapazes, Lila assumia uma postura completamente diferente daquilo que era suposto para o seu sexo. Lena vive com desconforto as transformações no seu corpo – a menstruação, os seios a crescer, o acne – enquanto Lila só tardiamente começa a ver transformações no seu corpo.
Lila não só aprendera antes de todos a ler, a escrever, o italiano, o latim ou o grego, mas, atenta ao que se passa à sua volta, começa a interessar-se pelo "antes", ou seja, pela história que marca a vida das pessoas, mas que as pessoas ignoram, não querendo falar de coisas tão marcantes nas suas vidas como o fascismo ou a monarquia.
Se por um lado se verifica a ascensão social que o acesso ao conhecimento, à escola secundária – a escola dos ricos – vai trazer a Lena, por outro, ela vive ao longo dos anos sentimentos contraditórios e muito diversos na sua relação com Lila: ciúme pela independência de Lila, admiração pela sua capacidade de gerir os seus sentimentos e desejos, incompreensão pelo corte com as leituras e o estudo autónomo que Lila sempre fizera. Mas a grande alteração no comportamento de Lila ocorreu quando ela se tornou noiva de Stefano; como que se despersonaliza, se apaga, abandona os seus sonhos, deixa de ser a Lila, passa a ser "a Jacqueline Kennedy dos subúrbios". Terá Lila caído numa ratoeira com o casamento, ou antes pelo contrário, continua a ser ela a comandar o seu destino e a seguir um objectivo traçado: criar a sua própria linha de produção dos sapatos Cerullo? A menina insubmissa transforma-se na esposa/filha submissa? Por outro lado, Lena a menina boazinha que sempre fora, a aluna irrepreensível afronta o professor de Religião e assume com energia a defesa de uma posição crítica face aos dogmas da religião.
Elena/Lenú que sempre se achara inferior a Lila, menos inteligente, menos atraente é afinal para Lila a sua amiga genial! É comovente a cena entre as duas amigas na manhã do casamento, quando Lila convida a amiga para a ajudar a lavar-se e vestir-se para o casamento. É como que uma separação, o fim da adolescência, o fim de um período em que as duas sempre andaram/estiveram ligadas, mesmo quando os seus percursos de vida já tinham seguido caminhos diferentes. A cena do casamento onde as várias famílias do bairro estão presentes, convidadas pela noiva e pelo noivo não deixa de ser, como todos os acontecimentos do bairro, marcado pela diferença social, com os convidados da noiva a queixarem-se de que não só estão a ser servidos mais tarde, mas que até o vinho é de pior qualidade que aquele que é servido aos familiares do noivo!
Embora me centrando nesta apreciação nas duas amigas, as personagens centrais da história, as famílias que habitam o bairro estão sempre presentes e têm personalidades e comportamentos bem vincados, desempenhando papéis de poder, de confronto, de negociação. São sapateiros, charcuteiros, empregadas de limpeza, porteiros, carpinteiros, ferroviários, vendedores de fruta e legumes, pedreiros, mecânicos, proprietários de um bar-pastelaria, professores.
A saga das suas vidas segue nos próximos volumes.

Almerinda Bento

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