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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A Convidada Escolhe: "As Filhas Sem Nome"

"As Filhas sem Nome" (do inglês "Miss Chopsticks"), Xinran, 2007
Este livro passa-se no início deste século e foi escrito por uma jornalista chinesa cujo trabalho de apresentadora de um programa de rádio a levou a conhecer e conversar com grande número de mulheres muito diversas oriundas de um país imenso, a China. As diferenças entre elas decorriam da origem geográfica, mas também de serem citadinas ou camponesas, com hábitos, culturas e dialectos tão distintos que por vezes pareciam terem origem em países diferentes. Chinesas, diferentes, mas com um traço comum: discriminadas por serem mulheres.
Quando a autora, no final dos anos 90 do século passado, foi viver para Inglaterra, teve de trabalhar como empregada de mesa em restaurantes e em hotéis, viveu na pele a condição de imigrante, invisível e nessa altura recordou algumas mulheres rurais chinesas que se tinham mudado para as cidades em busca de uma vida melhor e que eram ignoradas e tornadas invisíveis, apesar da imprescindibilidade do seu trabalho para a comunidade.
Lembrou-se das histórias que tinha ouvido das bocas dessas suas conterrâneas, da infelicidade que era não terem filhos, mas apenas filhas, havendo até casos extremos de mulheres que se suicidavam por isso. Numa sociedade que encara(va) as raparigas como "pauzinhos" (chopsticks), úteis, mas frágeis e facilmente quebráveis, portanto incapazes de serem o suporte de uma casa, só um rapaz pode ter esse papel, pois é tido como a "trave-mestra" de uma casa.
É a partir desta triste e dura realidade que a autora vai desenvolver o seu romance. Uma família camponesa, infeliz e socialmente desvalorizada porque teve seis filhas e nenhum filho-varão. Estes "pauzinhos" nem sequer merecem ter um nome, apenas um número, correspondendo à sua chegada ao mundo. No entanto, há três – a Três, a Cinco e a Seis – que ousam sair desse mundo profundamente limitado, sem saídas, caracterizado pela pobreza e escassez a todos os níveis.
A chegada à cidade – Nanquim – é uma revelação, por vezes dolorosa. Mas também há uma alegria infantil e encantadora no prazer da descoberta das pequenas coisas. Tudo é surpreendente para aquelas três irmãs de uma ingenuidade extrema, confrontadas com o choque de culturas, educadas na repressão dos corpos e da sexualidade, moldadas para servir e não mais do que isso. Aliás, o que sempre tinham visto como modo de vida da mãe, dominada por um forte sentimento de inferioridade comum a todas as mulheres do campo e que elas querem reverter e compensar de algum modo no final do livro, quando regressam a casa para as comemorações do Festival da Primavera.
Diferentes nas suas aptidões, elas vão ser valorizadas na cidade de Nanquim pelas suas qualidades particulares, coisa que nunca tinham conhecido na sua aldeia nem no seio da sua família. A Três era especialmente dotada para fazer arranjos artísticos com vegetais frescos, o que tornou o restaurante O Tolo Feliz onde trabalhava mais apetecível e com mais clientela. A Cinco, sempre considerada o patinho feio da família e a rapariga mais estúpida da aldeia, revelou no Centro Cultural Aquático do Dragão uma sensibilidade natural para conjugar as ervas usadas nos tratamentos termais. Por fim, a Seis, a única das irmãs que tinha frequentado a escola e que sabia ler, encontrou na Casa de Chá dos Provadores de Livros o espaço ideal para a leitura, para alargar a sua visão do mundo no contacto com os estrangeiros, para aprender inglês e ensinar chinês aos estudantes estrangeiros que frequentavam a Casa de Chá. Aí descobriu a existência de livros proibidos e também o quase completo desconhecimento da cultura e da história da China por parte dos ocidentais.
Ao longo do livro são frequentes as referências aos diferentes períodos da história da China com as figuras do imperador, dos senhores da guerra e mais recentemente o papel da revolução cultural de Mao na vida do povo. Apesar da abertura mais recente da sociedade chinesa ao exterior e da alteração de alguma legislação restritiva, há uma crítica à corrupção generalizada começando pelos mais baixos funcionários do Estado, à prepotência da polícia e ao atropelo da justiça e dos direitos humanos e, sobretudo, há uma crítica ao fosso enorme na vida das pessoas do campo em relação às da cidade, assim como um olhar muito crítico à forma como as mulheres são encaradas na sociedade chinesa actual. "…folhas de erva a crescerem nas fendas entre as pedras; queriam ver a luz do Sol e arranjar um espaço para respirarem, mas o vento e a chuva abatiam-se sobre elas. Era muito fácil estas raparigas serem esmagadas pelos homens e sentirem que não tinham o menor valor."
Espantado e ao mesmo tempo incapaz de assumir a realidade das transformações notórias nas filhas, o pai pergunta-se se seria possível que as suas filhas pauzinhos fossem capazes de suportar o telhado da sua casa. O posfácio que resulta do desafio da tradutora e amiga pessoal de Xinran para que ela desvende a continuação da história das três irmãs que um dia saíram da sua aldeia e descobriram um outro mundo na cidade de Nanquim é, em minha opinião, irrelevante e retira, porventura, a este belo romance o tom optimista do percurso daquelas meninas sem nome que o pai considerava meros pauzinhos.

Almerinda Bento

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